terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

(RE)LIDO #90






















COM OS BEATLES CARO JÓ
 
de Luís Pinheiro de Almeida. Lisboa; Sistema Solar (Documenta), 2019 
A história da música costuma acentuar que os The Beatles não pertencem a nenhuma geração. Que são imortais, facilmente permeáveis a idades ou géneros e, por isso, intergeracionais e populares. Certo, mas há uma dessas linhagens iniciais que, vivendo/bebendo pela primeira vez de forma simultânea e apaixonada a explosão, constitui o traço alfa de um fenómeno planetário a que Portugal não escapou mesmo apertado num regime controlado de ditadura e isolamento. São, por isso, não muitos os vestígios sobre o vendaval que os de Liverpool subtilmente provocaram na juventude portuguesa mas que se traduziu inevitavelmente numa influência arterial em bandas-réplica, modas ou costumes que o regime se apressava a negar e combater. É essa raridade, traduzida numa selecção de relatos epistolares resguardados como tesouros, que este livro faz o favor de eternizar evitando esquecimentos e lapsos e, já agora, motivando o destapar e revelação de outros testemunhos que forçosamente se encontrem ainda por "escavar". 

A paixão de Luís Pinheiro de Almeida pelos The Beatles é conhecida e facilmente confirmável noutros livros e experiências, mania saudável a que desde a juventude deu corda infindável e inquebrável traduzida numa partilha com os irmãos e os amigos da natalícia e pacata Coimbra da década de sessenta. Estudante em Lisboa aos 17 anos, uma cidade "chata" nas suas palavras, o quebrar do "exílio" e das distâncias e cumplicidades com os do Mondego fez-se por carta ao compincha Jó a quem passou a escrever regularmente, correio religiosamente salvado durante quarenta anos pelo destinatário e onde relata sem fôlego a vida na capital num concentrado de informações sobre os filmes vistos, os discos ouvidos, as idas a concertos e, principalmente, o despertar dos programas da rádio mais aventureiros na explosão do yé-yé e da pop music. Os Beatles ganham óbvia predilecção e primazia mas há referências a tantas outras bandas e artistas com destaque nas páginas das revistas e jornais recortados com devoção, fobia que alcança números avassaladores num curto período de tempo. A narração dos "acontecimentos" é quase sempre interrompida pela referência à canção que, naquele momento, a rádio transmitia preferencialmente em período nocturno, um tom coloquial de genuíno vernáculo português a motivar a jocosa bola vermelha da capa, e cujo conteúdo era lido em voz alta ou à vez pelos companheiros distantes mas, alegremente, ansiosos. 

Escritas da casa de Lisboa ou da veraneante Mira, sobressai nelas um empolgamento crescente e quase complusivo na obtenção dos discos, das canções, das fotografias, das letras, das histórias ou boatos sobre "os 4 cabeleiras do após-calipso" e o seu mundo vertido pela imprensa ou confirmado em plena rua que alcança múltiplos exageros ou brincadeiras, desde uma informação em maiúsculas "vi agora à venda umas carteiras para rapariga com as fotografias e os autógrafos dos Beatles" (carta de 1 de Outubro de 1964) ao gozo pela chacota invejosa noticiando a presença num concerto dos próprios Beatles no Monumental, descrevendo a suposta proximidade com os músicos, as suas qualidades e uma suspirada sessão de autógrafos donde saiu triunfante (carta de 24 de Julho de 1964). 

Estamos, assim e quase sem querer, a vaguear numa panorâmica sociocultural de uma Lisboa cinzenta mas onde a força da música saída de uma rádio próxima ou distante, em onda curta ou média, permitiu a alguns "passar a palavra" pela partilha de fitas gravadas a custo, pelo empréstimo circular dos vinis ou a arrojada promoção de concertos. Trata-se, afinal, de uma saborosa homenagem à amizade juvenil motivadora da descoberta, da aventura ou da coragem como sinónimo de lealdade e fraternidade. E pensar que, quase sempre, tudo começa numa canção, neste caso esta "Do You Want To Know a Secret" cantada, sem ainda o saber, por um tal George Harrison...

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