quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

(RE)VISTO #113





















SHOW ME THE PICTURE: A HISTÓRIA DE JIM MARSHALL 
de Alfred George Bailey. Reino Unido/E.U.A., Film Constellation, 2019 
TVCine Edition, Portugal, 13 de Janeiro de 2024 
Levar uma máquina fotográfica para um concerto de rock é, afinal, um gesto antigo e natural que continua ainda hoje a multiplicar-se. O resultado obtido terá sempre a ver com a escolha do momento e, sobretudo, o talento em como o fazer de forma incomum - o norte-americano Jim Marshall é talvez, a esse nível, o nome maior da história da música a que se juntam ainda notáveis instantâneos dos movimentos pelos direitos civis da década de sessenta. Após a sua morte em 2010, fazer-lhe uma biografia documental acaba por ser de uma justiça incontestável mas também obrigatória, atendendo ao calibre do seu legado e para o que se recorreu a testemunhos e confissões de amigos como do actor Michael Douglas ou de aficionados mais novos como o reputado Anton Corbjin que teve no seu exemplo a força inspiradora da sua carreira. 

O isolamento que Marshall sofreu no fim da vida, muito por culpa de uma ruinosa dependência de cocaína, contrastou com o permanente convívio com figuras e artistas de eleição que logo lhe reconheceram a diferença e, acima de tudo, a virtude - no despertar criativo de Coltrane, de Dylan ou Hendrix já Marshall se movimentava na sua proximidade, merecendo a confiança e até uma amizade de todos eles que se foi espalhando a outros artistas como Janis Joplin. Marshall passou a ser parte da família, um à vontade que se manteria intacto quer na intimidade e proximidade destinada a um retrato quer no acesso livre a backstages ou frentes de palco, de Newport, Monterey, Altamont ou Woodstock, com os The Beatles em Candlestick Park de São Francisco, naquilo que seria o último concerto dos de Liverpool, ou, anos depois, num avião dos The Rolling Stones em digressão americana movida a linhas brancas...

A azáfama diária desta vida de fotógrafo-estrela sugere uma boémia crescente, imparável e, obviamente, massacrante que só o encontro com Amelia Davis haveria de estancar - aos poucos e a partir de 1998, foi ela que, cimentando a amizade difícil num estatuto de confidente, conseguiu controlar o incontrolável na beira de um precipício contínuo. O fundo patrimonial hoje existente com o nome de Jim Marshall cumpre um desígnio que o próprio sempre defendeu e praticou, isto é, ter a totalidade dos direitos de autor das suas imagens, uma fortuna que se manteve ameaçada até aos últimos dias de um carrossel difícil de parar. 

Sem surpresas, o filme é uma constante galeria da perfeição. Ao cativante preto e branco que emerge na delicadeza única de um Miles Davis boxeur sentado num canto do ringue ou na força do dedo em riste de Johnny Cash em San Quentin, pode adicionar-se também o colorido vintage de um Hendrix ajoelhado em frente à sua guitarra em chamas ou no filtro vermelho que aplicou a uma panorâmica mítica de Woodstock. Todas património da humanidade, todas de uma eternidade intocável. Haverá, por isso e para cada um de nós, uma fotografia preferida que se pode eleger com tempo a partir do livro que foi publicado com este documentário. 

Mas Marshall, que tinha na Leica uma extensão do corpo quando saía de casa, tinha também um lado errático, rancoroso e desafiador que, num impulso, o fazia guardar uma arma atrás das costas em todas as ocasiões e eventos. Para alguém que fotografou o, então, novo símbolo da paz de forma constante, este jogo de amor e ódio evidenciou-se um refúgio perigoso que o levou a tribunais e celas frias como consequência de uma conduta em que o inimigo sempre foi o próprio Marshall. Talvez sem essa tensão psicológica, sem essa desafiante fragilidade, tamanhas fotografias nunca se revelariam na sua sumptuosidade, magnificência e marca que, aos nossos olhos, se agigantam em lições mestras de essência estética e de arte fotográfica. Um portento!   

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