Havia razões lógicas para o fenómeno, logo listado numa catrefada de escolhas como "essencial", embora fossem poucos os que conseguiam estar perto de três horas seguidas a tentar perceber o conceptualismo da façanha amorosa, melhor, da odisseia sobre canções ditas amorosas. Também lhe rendemos, nessa época, variadas e prolongadas escutas, sempre no pressuposto que o mini-disc ou o leitor do primeiro carro, assim equipado, tinha a funcionar a tecla de avançar e recuar. Um género de repositório aleatório da canção pop para o qual nem sempre havia paciência ou paladar auditivo e que, como em tudo, tinha partes e sequências preferidas, desprezos assumidos e descobertas contínuas. Retomar, vinte cinco anos depois, os caminhos dessas primazias afigurava-se estranho se bem que de irresistibilidade imediata, apesar da incerteza quanto ao anacronismo da maratona proposta.
Fica desde já registado que o exercício correu bem. O marco artístico, então elogiado, mantêm-se sem prazo de validade conhecido ou qualquer risco de azedar, muito por culpa de uma competência instrumental e vocal sem equívocos, reparos ou ondulações, permitindo à plateia concentrar-se nas canções, nas suas nuances e, principalmente, no non-sense e sátira de muitas das letras envoltas de géneros e feitios sonoros contrastantes onde a subtileza é trave-mestra. O voz a la Cash de Merritt continua marcante, posicional e inimitável, mas será de elogiar ainda a clareza de Shirley Simms e do guitarrista (nome?), que lá de trás, se levantou para terminar da melhor maneira a primeira noite com um enorme "Promises of Eternity".
Muita aplaudidas foram também "Papa Was a Rodeo", "Long-Forgotten Fairytale", "The Death of Ferdinand de Saussure", a derradeira "Zebra" ou essa estranha pérola chamada "Love Is Like Jazz" que, se no disco já é viciante e suspensiva, ao vivo avolumou-se num pedaço de refinado e inesquecível vaudeville.
Sem piedade, confessada fica a nota que foi esta a primeira vez que ouvimos o disco completo sem descontinuidades, e nem mesmo uma interrupção de vinte e quatro horas nos fez ir buscar o volume ao armário dos cd's para avivar memórias e preparar os ouvidos. A setlist, a cumprir religiosamente, era só um pormenor de um grande e imprescindível concerto. Em 2050 esperamos retomar-lhe o gosto. Por essa altura, já uma tela virtual ou outra qualquer liquidez nos fará recordar "All In: A Broadway Comedy About Love", uma peça de teatro inspirada na trilogia de cantos, então cinquentenária, estreada em Dezembro último...
1 comentário:
O guitarrista chama-se Anthony Kaczynski. Parabéns pelo texto. Gostei de ler.
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