de Kim Gordon. Lisboa; Bertrand Editora, 2016
Os trinta anos de vida (1981-2011) dos Sonic Youth são, por si só, um feito de imediato reconhecimento e demorada vénia. A surpreendente separação matrimonial de Thurston Moore e Kim Gordon nesse último ano para espanto generalizado, entre acusações públicas de traição e outros pecadilhos, levou ao finar de uma banda que se julgava uma fortaleza de noise rock alternativo continuamente activa, desprendida e arrojada. A tal miúda da banda, que se transformou numa guitarrista baixo de imagem icónica e forte influência no avant-garde lírico e experimental do projecto, acabou nessa altura a cortar o cordão umbilical coberto de uma espessa e acumulada camada de desilusão e desamor numa ruptura posteriormente assumida como irreversível.
Na decisão de relatar tão longa e influente contribuição para os SY, este amargo episódio é como que arrumado logo no início do livro - a cidade é São Paulo, o evento é o último concerto da banda perante uma multidão à chuva que conhecia já alguns dos contornos da separação e que Gordon, apesar do mau estar, não tenta sacralizar. A culpa assenta na traição vinda do outro lado, uma atitude descrita como patética e juvenil que simultaneamente a enerva e resigna. Adiante, que há muitas outras histórias interessantes para narrar e revelar de forma consistente desde a infância no sul da Califórnia no final da década de sessenta, condicionada pela figura do pai e de Keller, o irmão mais velho descrito sem contemplações como sádico e arrogante, até ao mergulho no movimento artístico da baixa de Manhattan já nos anos oitenta e que a marcaria de forma indelével até aos dias de hoje. Notada é também a visibilidade, afiada dos dois lados, que o grunge acabaria por aportar e confundir a um casamento a viver na ruralidade de Northampton (Massachuttes), o nascimento da filha Coco e onde a personagem de Kurt Cobain, apesar de acarinhada, merece alguma distância punitiva.
Com o aproximar do fim do livro, a vertente de artista visual que Gordon sempre praticou e cultivou ganha uma nova determinação e envolvimento na curadoria de exposições para museus europeus e americanos e um alargar de horizontes musicais, nomeadamente, o experimentalismo sonoro partilhado ao lado de artistas e amigos como Ikue Mori, tal como testemunhamos em Guimarães, logo em 2012, numa estranha mas intensa improvisação. Falta juntar um reticente carreira de actriz, sempre de forma low-profile respondendo a convites espaçados de Todd Haynes ou, há três anos, de Gus Van Sant.
Estamos, assim, perante uma arrojada poliartista sem receios do ensaio ou experiência mesmo que condicionada por alguma esquizofrenia, que controlou desde a juventude, e uma timidez assumida e misteriosa que faz do seu exemplo feminino um caso único de sobrevivência ao fim de quarenta anos de carreira sofrida mas vencedora. Este livro e o álbum "No Home Record", o primeiro a solo lançado em 2019 e com um video recente onde ganha protagonismo a filha Coco, são só a confirmação da fibra resistente de uma eterna lutadora.
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