quinta-feira, 24 de setembro de 2020

(RE)VISTO #78


























HITSVILLE: O NASCIMENTO DA MOTOWN 

de Benjamin Turner e Gabe Turner. E.U.A, Motown/Showtime, 2019 
TVCine Edition, Portugal, 18 de Setembro de 2020 
A incrível história da Motown valeu já algumas abordagens documentais, umas mais generalistas como a do Canal História datada de 2007 e outras em formato filme de argumento baseado em supostos factos verídicos como, por exemplo, "Dreamgirls" do ano anterior, que passou para os grandes ecrãs o musical com o mesmo nome de 1981 e onde se conta a ascensão das The Supremes e Diana Ross protagonizada pela eterna Beyoncé. Em ambos, há um personagem central chamado Berry Gordy que se tornou uma figura mítica da música norte-americana pela ousadia em criar uma editora especificamente de música soul chamada primeiro Tamla (1959) e depois Tamla Motown ou simplesmente Motown (1960). O nome associa as palavras motor e town tal como é conhecida a cidade de Detroit onde o projecto cresceu e vingou precisamente inspirado num trabalho temporário de Gordy como operário numa linha de montagem da Ford e que ele transpôs, primeiro em sonho e depois a muito custo, para fazer canções de sucesso - uma "fábrica" onde o esqueleto de um tema era transformado e polido como cintilante e potencial êxito para passar nas rádios e inundar as lojas com pequenos singles de vinil.  

Os anfitriões deste novo filme-documento, que pretendeu evocar os sessenta anos da editora discográfica, são a dupla desbravadora Berry Gordy e Smokey Robinson em diálogos e constantes provocações de animada e bem disposta conversa e desafio sobre os altos e baixos de tamanha máquina de êxitos/hinos - uma casa no centro da cidade autosuficiente de compositores, músicos, cantores, backsingers, estúdios de gravação e dotada de um sistema de distribuição eficaz e pronto para satisfazer os jovens clientes, local hoje transformado em museu e que foi o epicentro fervilhante de um dos maiores fenómenos de concentração de talento por metro quadrado da história da música para sempre baptizado de Hitsville USA. A catadupa de artistas e bandas que desfila à nossa frente quase se torna inverosímil, todos rodeados estrategicamente pelos melhores músicos, os jovens da comunidade envolvidos no jazz desde cedo em programas educativos das escolas públicas e que teve nos Funk Brothers o veio central de uma engrenagem residente e oleada, ela própria já retratada em "Standing in the Shadows of Motown" de 2002 que vimos no Fantasporto de 2004 e posteriormente editado em DVD pelo próprio festival com o nome de "Motown - Uma História".

 

De Smokey Robinson ao então jazzy Marvin Gaye logo transformado em estrela pop, a importância da harmonia vocal acabaria por constituir a pedra de toque de uma receita singradora e decisiva para encontrar, contratar e adornar novos artistas como o então miúdo de doze anos Stevie Wonder, um ultra-dotado e divertido instrumentista e vocalista rapidamente elogiado e levado ao colo ou os precoces Jackson 5 onde despontava o catraio Michael Jackson e que tiveram, mesmo assim, de prestar provas perante todos os nomes ainda não convencidos até aqui referidos e, também eles, potenciais concorrentes e competidores. Sim, perante esta "Disneylândia musical" Gordy lança um género de desafio, um campeonato de tops com os respectivos campeões traduzido em séries simultâneas de números uns, o que chegou e sobrou para remover os The Beatles do trono até aí quase inatingível e que culminou em "My Girl" dos The Temptations, tema de riff inicial marcante e de inédito arrojo artístico onde planavam uns violinos e uns metais clássicos já quase no final para que a melodia se colasse sem contemplações. Resultado: um milhão de discos vendidos! 

O controle de qualidade, mesmo sem um departamento formal, submergia democraticamente de um género de modernas brainstorms de forma a melhorar sempre o produto e a eleger os potenciais hits mesmo que duvidosos como "Track of My Tears" de Smokey Robinson & The Miracles ou "I Can't Help My Self (Sugar Pie, Honey Bunch)" dos Four Tops em que os primeiros dez segundos da canção são puro pólen à espera de abelhas. Este espírito de comunidade e liberdade foram um verdadeiro teste ao próprio Gordy apostado em expandir pela infalível máxima "criar, vender e receber", colocando o controlo nas mãos de um italiano de aspecto mafioso que forçou a irradiação dos discos pelas rádios "brancas", até aí um reduto quase proibido. Tendo os jovens como público alvo para comprar de olhos fechados o novo som, a arte da canção passa a não tem cor e as The Supremes com cinco hits consecutivos na frente das charts rebentariam a escala com "Where Did Our Love Go" e como que globalizavam a sonoridade Motown.

 

Faltava, contudo, um teste, uma quase provocação - a Motown Revue, uma competição pública ao vivo de talentos da casa de arrebatar os recintos mas as parcas condições das digressões e a flamejante rejeição e afronta por racismo ou segregação ao ponto dos artistas serem recebidos a tiro (episódios, aliás, bem retratados no referido "Dreamgirls") desperta a atenção política de Martin Luther King, atraído pelo positivismo da musica, e do efervescente fenómeno televisivo. Quando as mesmas The Supremes surgiram ainda a preto e branco no Ed Sullivan Show numa primeira de dezasseis vezes (!), o black chic não mais parou de crescer e chegou à Europa para se tornar no som favorito dos próprios Fabfour. A linha de "montagem" não estava, mesmo assim, satisfeita - "I Heard Through the Gravepine" nas versões de Gladys Night & The Pips e depois de Marvin Gaye, tornariam o tema no maior êxito de sempre da Motown... em duas versões vencedoras! 

Mas o ciclo de sucesso, de qualquer sucesso, traz atritos e problemas e o love affair de Berry Gordy com Diana Ross, a saída do trio de compositores Holland-Dozier-Holland ou a "libertação" de Stevie Wonder que o levou até ao estouro com "Superstition" levou Gordy a repensar o projecto e a testar alguma inovação à custa dos Jackson 5 em modo cartoon como série de televisão - de Detroit para Hollywood - num conglomerado de entretenimento que enfrentava a mudança e resistia às tentações políticas, mesmo que a pisar o risco da incompreensão. Contudo, o Black Power, a nefasta guerra do Vietnam e a agitação social cedo estilhaçaram esses e outros receios e Marvin Gaye chega ao impensável - "What's Going On", a canção perfeita e o disco perfeito, é mesmo sobre essa mesma agitação social e a inutilidade da guerra, um pináculo criativo que Gordy, temeroso de represálias, colocou inicialmente na prateleira. A sua força incisiva, que ainda hoje não perdeu nenhuma consistência e modernidade, prova, afinal, que as pessoas não são carros e os artistas, com vida própria, tendem a saltar, mediante as circunstâncias, para "fora da caixa", para fora da tal "linha de produção". Mesmo com a mudança para a Los Angeles na década de setenta para "aumentar as instalações e a diversidade de produtos", a Motown continuou a ser o perfeito exemplo do tal e poderoso sonho americano de unir as pessoas pela música. Que falta fazia... Ain't no mountain high!


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