de Marc Di Domenico. França: Anna Sanders Films/Artisan Producter/Mélodium/France 3 Cinéma, 2019
RTP2, Portugal, 4 de Abril de 2021 (em arquivo)
Quando Edith Piaf ofereceu ao seu protegido Charles Aznavour uma câmara de filmar Paillard, o jovem artista nunca mais largou o aparelho. Estávamos em 1948 e, desde aí até 1982, foi com ela e com outras que se seguiram que desenvolveu uma mania salutar de tudo captar em filme mesmo sabendo que nunca teria muita disposição para ver o resultado do seu passatempo documental e informal.
Nesses tempos, ao lado do pianista Pierre Roche, aventurou-se nos palcos convidado pela própria Piaf para digressões por França e até pelos E.U.A. que aguçaram outras pretensões mais profissionais como uma carreira em nome próprio no mundo da música e também no cinema (participou em mais de oitenta filmes de consagrados como Cocteau, Gobbi, Chabriol ou Truffaut). Aclamado como o Sinatra francês em centenas de discos e palcos, apertou corações e maravilhou plateias com êxitos que a maioria sabia cantar mas não discernia o sentido das palavras. "Hier Encore" e o eterno "La Bohême" são bons exemplos dessa liminar eternidade e das poucas canções que o documentário deixa, ainda bem, correr entre imagens de princípio ao fim...
Mas havia uma vida própria, montanhosa, de casamentos feitos e desfeitos, traições e impulsos, filhos amados e perdidos, de raízes arménias orgulhosamente imbuídas mas tenebrosas na memória familiar da guerra que levou ao refúgio. A tudo resistiu, a tudo apontou uma máquina de 8 ou 16mm sem olhar para trás quase num jeito compulsivo de festejar o presente, as conquistas ou contentamentos em viagens pela América, Hong-Kong, Macau e o Japão mas também África e o seu norte argelino ou marroquino. Filmou amigos e conhecidos de férias em Capri ou Veneza em imagens íntimas de uma beleza pungente no azulão do mar, do abanar dos cabelos ou do colorido das vestes que ferem pela nostalgia e ventura que emerge das suas feições que outros, poucos, igualmente fizeram filmar talvez na tentativa de o eternizarem feliz, tranquilo, amado.
Uns meses antes da sua morte em Outubro de 2018, o próprio Aznavour e o realizador Marc di Domenico começaram a editar as imagens e decidiram fazer um documentário com esse material até aí inédito e esquecido. O resultado personaliza um documento de uma beleza sincera que nos remete para uma luta invisível de um artista apostado em transpor preconceitos e muros e que teve numa câmara de filmar uma arma narrativa complementar e imagética de uma auto-biografia editada em 1970 - "eu filmo, eu existo". Um filme inquieto que consegue o que poucos alcançam - perturbar-nos pela paz e ternura que transmite!
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