terça-feira, 30 de março de 2021

(RE)LIDO #96






















NÃO DÁ PARA FICAR PARADO 
Música afro-portuguesa. Celebração, conflito e esperança 
de Vítor Belanciano. Porto: Edições Afrontamento, 2020 
A raiz africana de muita da música moderna portuguesa não têm até hoje um estudo sociológico de referência que lhe trace uma teoria ou uma impossível explicação única. Acentuaram-se, é certo, os estudos académicos ou universitários com enfoque na última década já que é nela que reside uma maior visibilidade mediática com a massificação do chamado kuduro e, ultimamente, da kizomba. Notamos a transformação quando picamos, por exemplo, mais a sério a rádio pública Antena 3 ou quando, involuntariamente, a música ambiente de uma loja chinesa insiste na toada melosa e adoçada sem sabermos quem toca ou diz enquanto a funcionária lá vai cantarolando a letra sabida de cor. 

Somos do tempo, já adultos, das "Gravuras Não Sabem Nadar" dos Black Company e do pioneirismo do General D mas confessamos um alheamento assumido para com o chamado hip-hop nacional maioritariamente lisboeta ou com base nortenha, seja por defeito no enredo seja por falta de contexto, arrasto ou onda de proximidade. O género merece-nos o máximo de respeito, fomos ao Coliseu com agrado ver os De La Soul e o Sam The Kid (2003?) e até nos divertimos com a M.I.A. em Coura (2007) e os The Weekend (2012), o Kendrick Lamar (2014), os Run The Jewels (2017) ou o Tyler the Creator (2018) no parque da Cidade da Invicta mas dos restantes quejandos inferiores, e não foram poucos nas últimas edições do Primavera Sound, mantivemos imediata distância que se estendeu a hypes sul-americanos ou castelhanos insuflados por uma certa imprensa internacional. Pecado? Desprezo? 

Talvez a culpa tenha sido de um tal de Diplo numa massacrante e já longínqua (2007) madrugada por Serralves o que não matou, contudo, a nossa curiosidade sobre o fenómeno e todas as suas derivações locais a requerer compêndio de vocabulário e outros esclarecimentos para "velhos" cinquentões. As mais de sessenta entrevistas ou conversas que Vitor Belanciano manteve com muitos dos protagonistas da dita música afro-portuguesa nas primeiras duas décadas deste século, muitas delas impressas no jornal "Público", conferem a este livro uma certificação de origem carimbada e uma utilidade ao nível de um dicionário técnico consultável. Percebe-se o seu gosto, a amizade e até a intimidade com alguns desses projectos de matriz autodidacta, corajosa e reactiva centrada numa segunda e terceira geração de agitadores artísticos de nacionalidade portuguesa com raízes familiares em África e que absorveram, desde cedo, os sons tradicionais ao gosto das cassetes ou discos guardados pelos mais próximos.  

É esse o fermento rítmico de muitas das sobreposições digitais de fabrico caseiro que, sem regras, surpreendem pela sujidade cruzada de cadências a que o corpo de muitos não resiste. Não conhecemos os bairros, não identificamos nenhum do beats, nunca estivemos numa noitada africana pela capital mas serve o livro para lhe sentir os rastos, as vicissitudes e conivências entre, por exemplo, Sintra e Nova Iorque muito por culpa do fenómeno Buraka Som Sistema, projecto progenitor de uma imensidão de ideias, aventuras e sucessos dispersos pela grande Lisboa e que se tornou num imparável laboratório anárquico de infusões inesperadas e reconhecimento internacional que se apegou até, entre controvérsias fúteis, à madame Madonna.          

Para lá da hipocrisia e da ambiguidade pós-colonial, constrói-se a partir da música uma história excitante e ainda incompleta de mistura e irrequieta socialização e que continua a ter na injustiça da realidade uma combustão natural e conflituosa a qualquer género musical, um guião de diversidade que pode e deve ser visualmente complementado por uma série de documentários já produzidos e projectados e onde se confirma, tal como no livro, que não vai dar para ficar parado.   



segunda-feira, 29 de março de 2021

THOMAS FEINER E O PIANO HOFMANN!















Escusado será dizer que qualquer oportunidade é boa para trazer até aqui a música de Thomas Feiner. No dia de hoje, recordamos o instrumental lançado em Março do ano transacto que despia o tema "Guide for the Perplexed", saído uns dias antes, através das teclas do seu velhinho e por vezes teimoso piano Hofmann. Foi nele que o sueco compôs o esboço de muitas das canções do clássico álbum "The Opiates" (2008) - e de que "For Now" é só um exemplo subliminar - e é nele que, segundo o próprio, quer continuar a confiar apesar dos amuos. 

O referido "Guide for the Perplexed", que conta com a voz da filha Alina, mereceu desde logo video dirigido por Feiner e uma recente remistura pelo multi-artista inglês Peter Chilvers, famoso pela sua colaboração com Brian Eno no desenvolvimento de aplicações musicais para iPhone e outros. 



NILS FRAHM, PIANO DIA E NOITE!






















A comemoração do Piano Day que hoje se assinala tem da parte do seu mentor Nils Frahm um excelente contributo - trata-se de um disco inédito registado em 2009 na sala Mumuth da University of Music and Performing Arts de Graz (Aústria) e que serviu de prática relativa à tese Conversations for Piano and Room com curadoria e produção de Thomas Geiger. Mais tarde desenvolvido no, esse sim, álbum de estreia "Felt" em 2011 para a Erased Tapes e parcialmente apresentado em futuros concertos ao vivo, os segmentos agora disponibilizados foram captados num grande piano e são hoje impraticáveis na sua pureza e irrepetível beleza. 

Por cá, destaque para a radio SBSR, através da agência Pinuts, que promete para logo um serão atraente programado por Luís Bandeira onde poderemos ouvir, entre outros, Bruno Bavota, Quentin Sirjacq, Tiago Sousa, JP Coimbra e Simon Walker. É por aqui

Entretanto e tal como o ano passado, a prestigiada Deutsche Grammophon assinala a mesma data desde ontem e de forma contínua a partir de seu canal de youtube, contando com o contributo de dezassete pianistas entre os quais os nossos Maria João Pires e Rui Massena. É por ali

KACY & CLAYTON AND MARLON WILLIAMS DE SECRETÁRIA (CASA)!

sexta-feira, 26 de março de 2021

CHANTAL ACDA, REFINADA PROFUNDIDADE!






















Previsto e cumprido! Saiu no dia hoje, via Glitterhouse Records, o novo trabalho "Saturday Moon" de Chantal Acda e que tem, aos poucos, vindo a ser dado a conhecer desde o final de 2020. Há parcerias com os Low (Alan Sparhawk e Mimi Parker) em "Disappear", colaborações repetidas com Eric Thielemans e Bill Frisell, guitarras do congolês Rodriguez Vangama ou orquestrações de Borgar Magnason. No total, são dezoito os músicos presentes e isso sente-se numa primeira audição das canções, onde transparece maior liberdade criativa e um diferente leque de influências. Alcançada está, assim, uma surpreendente e refinada profundidade.  



DUETOS IMPROVÁVEIS #236

CALEXICO & GISELA JOÃO 
Tanta Tristeza (Calexico) 
Álbum "Seasonal Shift", City Slang, Dezembro de 2020

FIONN REGAN, NOVA CENA!














Sobre uma nova cena do magnífico Fionn Regan ainda não há muito mais pormenores. A canção é a primeira desde o álbum "Cala" de 2019 e tem o nome de "The Scene Is Dead" com video dirigido, desenhado e fotografado pelo próprio. Seja lá o que for, certamente um inédito que estará ao lado de outros num regresso aos discos, tem efeito imediato e aditivo...

quarta-feira, 24 de março de 2021

JOHN GRANT, UM RAPAZ DO MICHIGAN!






















Com "Love is Magic" de 2018, John Grant assentava em disco alguma da necessária e habitual introspecção sem esconder o desafio constante impulsionado pelas injustiças, descriminações ou desigualdades. Com "Boy From Michigan", tema título de um novo álbum na Bella Union agendado para Junho, revela-se o aparente regresso a uma inspiração biográfica e pessoal sobre a infância ou a juventude, romanceando experiências passadas e as suas quase imperceptíveis consequências nos dias de hoje. Aqui fica o primeiro capítulo.

BLACK MIDI, CAVALGADA HERÓICA!






















O quarteto londrino Black Midi não se esqueceu do que é o rock pesado e da suas capacidades terapêuticas mas juntou-lhe sempre umas quantas descargas experimentais só para que o abananço não fosse uma onda repetida na dimensão mas sim cruzada e elevada à potência. Foi assim no álbum de estreia "Schlagenheim" de 2019 e que alguns privilegiados experimentaram a três dimensões em Guimarães em Outubro do ano anterior, será assim com uma nova réplica do terramoto que chegará em Maio. 

O segundo disco chama-se "Cavalgade" e tem em "John L" um indescritível primeiro abalo que lhe junta um video realizado pela reputada coreógrafa Nina Mcneely e que é tudo menos relaxante. E pensar que um dos novos temas tem o título de "Marlene Dietrich"... Estava previsto o regresso da banda a Portugal no Primavera Sound deste ano, mas com o seu adiamento não é ainda possível confirmar que tamanha libertação de calor se espalhará, como convêm, pelo Parque da Cidade. 

terça-feira, 23 de março de 2021

(RE)LIDO #95






















THE UNTHANKS 
Memory Book Vol I 
Inglaterra; Rabble Rouser Music, 2016
A folk inglesa, aquela mais enraizada numa tradição de secular percurso, sugere ser uma tendência certeira muito british de manter activo um património imaterial que não precisa de diploma ou atestado de autenticidade. As irmãs Becky e Rachel Unthank cresceram nesse lume de costumes e feições sem esconder sotaques nortenhos, danças populares e instrumentos locais que circundam variadas influências e consagrações, lançando-se no conturbado meandro da indústria musical sem trair nenhum desses legados. Quando finalmente assumiram em palco e em disco o nome de The Unthanks (2010), já meio mundo desse mundo tinha reconhecido e aplaudido a voz da mana mais velha através do projecto inicial (2005) Rachel Unthank & The Winterset, onde se escondia a jovem Becky, e o caminho para uma notoriedade mais abrangente não tardou a acontecer.

É desse ano dez, aliás, a digressão europeia que as trouxe em boa hora a Espinho, numa noite memorável mesmo para aqueles que, como nós, nunca as tinham ouvido e visto sem saber o quão essa imperdoável lacuna arrastava um lastro de pecado. Notou-se que o projecto assumia uma positiva e verdadeira raiz quadrada onde ao veio assinalável de genuinidade se juntava, sem receios, uma faceta experimental com ingredientes no jazz (Miles Davis), no minimalismo (Steve Reich) ou no rock de fusão (Robert Wyatt) e que devia ter merecido, mesmo à socapa, registo videográfico para a posteridade. Desde aí, estava prometido, não seria nunca mais permitido perder de vista os seus discos ou outras publicações paralelas. 

É o caso deste magnífico livro de memórias que as próprias organizaram e editaram como prova de carinho para com uma infindável legião de admiradores que ao longo destes anos foram acumulando sem favor, um repositório cronológico de fotografias, testemunhos, recortes de imprensa, memorabilia, críticas a discos, viagens, brincadeiras, testemunhos de fãs e músicos, discografia, influências de artistas, you name it, desde a infância de cada um dos membros da banda, e foram e são pelo menos meia dúzia, até ao consagrado disco "Mount The Air" (2015). O relato contempla, pelo menos, uma referência a uma noite portuguesa de tropelias aquando de um aniversário comemorado em digressão (p. 92). 

Paralelamente, mas à qual não chegamos a tempo, foi publicada uma caixa comemorativa - "Memory Box and Archive Tresures 2005-2015" - que contém registos em cd e vinil até aí inéditos e que serviram e servem de banda sonora, certamente, perfeita a toda esta história de vida de um projecto que ultrapassa, na amizade e amor, a família de sangue e se estende, pela cumplicidade e confiança, a uma linhagem alargada de amigos músicos, técnicos, produtores ou aficionados distantes na geografia mas orgulhosamente perto sempre que abrem este excelente livro/tesouro. Ficamos, ansiosos, à espera do segundo volume...    


FAZ HOJE (31) ANOS #55






















LLOYD COLE, Pavilhão das Antas, Porto, 23 de Março de 1990
 
. Público, por Sérgio C. Andrade e David Pontes, fotografia de Fernando Veludo, 25 de Março de 1990, p.39 

segunda-feira, 22 de março de 2021

KELSEY LU, VANGUARDA POP!

A magia deslumbrante de "Morning Dew", a última canção original de Kelsey Lu que mereceu video 360º a preceito, ganha agora arrojada e inesperada dose de parcerias de sonoridade ultra-dimensional em dois diferentes momentos: 

 - o mais recente, ao lado de Boys Noize e Chilly Gonzales (!), chama-se "Ride Or Die" e investe num delírio tecno sobre a incerteza corrente de tratamento visual a cargo do colectivo artístico nova-iorquino Art Camp & Danae Gosset & Danica Tan;

 - o mais antigo, editado no Natal e que marcou a saída da editora Columbia, junta Lu a Ives Tumor em "let all the poisons that lurk in the mud seep out", um expurgo inclassificável que conta ainda com o auxílio dos compositores Kelly Moran e Moses Boyd. 

Uma vanguardista libertadora!


NICK WATERHOUSE, LOUCOS ANOS VINTE!

Da imensa classe de Nick Waterhouse não teve esta casa nenhuma dúvida desde o primeiro álbum em 2012. Com cara de Buddy Holly moderno, é precisamente na memória de r&b, soul e jazz com travo sixties que o músico californiano destrava canções revigoradas e sedutoras, uma receita ganhadora que se mantêm em "Promenade Blue", disco a sair em breve. A inspiração foi buscá-la aos esverdeados  anos loucos de Gatsy, mudando a primazia para cor azul das melhores recordações de infância, das primeiras canções e gravações ou da correria viciante dos concertos em partilha com o público satisfeito. Tempos de loucura, mesmo que adaptados como é lema do próprio, se espera possam vir a ser repetidos a curto prazo.

Conhecem-se, entretanto, alguns dos novos temas, destacando-se "B. Santa Ana, 1986" numa alusão à cidade e ano natal e que foi o escolhido, não por acaso, para um sete polegadas de vinil de pôr a rodar uma plateia dançante. Pena que das trinta duas datas da próxima digressão europeia, que acontecem a partir do final de Setembro e até ao início de Novembro, não se encontre nenhuma cidade portuguesa pronta para receber a doidice...



sexta-feira, 19 de março de 2021

BRIGHT EYES, UM LADO CHESNUTT!

















Do regresso, magnífico, no verão passado dos Bright Eyes aos discos com "Down In the Weeds, Where the World Onde Was", há muitas e boas canções para escolher. Rondamos, desde aí, um single de vinil cor de laranja opaco (?) editado com "Persona Non Grata" sem saber o que estava no lado B mas o custo dos portes acabou, como muitas vezes sucede, por nos levar à desistência até uma melhor oportunidade. 

Com a recente divulgação de uma excelente versão de "Flirted With You All My Life" do mestre Vic Chesnutt, tema incluído no penúltimo disco "At the Cut" antes de partir em Dezembro de 2009 e uma veneração antiga da casa, acabamos ainda mais desesperados ao confirmar que, no tal lado desconhecido, está para sempre estriada essa cover homenagem de Conor Oberts a um dos maiores... baahh!


SCOTT MATTHEWS, ESTAMOS JUNTOS!
















Embora a edição digital do álbum "New Skin" de Scott Matthews remonte já ao final do ano passado, só agora começa a ganhar forma a sua promoção e lançamento com data oficial a 14 de Maio próximo e onde se destaca um lindo vinil azul-turquesa de imediata paixão. Hoje foi dia de estreia do video para o tema título a que se junta o anúncio de uma noite "All Requests Show 2" online marcada para 27 de Março, sábado, e que se segue a uma primeira e semelhante apresentação em Janeiro na qual Matthews satisfaz pedidos dos fãs e recria, de forma inesperada, algum do seu já longo reportório. Bilhetes à venda aqui

Entretanto e a três dimensões como convêm, está marcada uma intensa digressão por Inglaterra a partir de Outubro que chega à Europa no mês seguinte, estando o regresso a Portugal confirmado pelo próprio para esse período. Eia, estamos e estaremos juntos... assim o permita a santa vacina!

quinta-feira, 18 de março de 2021

UAUU #583

KISHI BASHI, VIVA A PRIMAVERA!






















Ainda não é um disco inteiro de novas canções mas para aí caminha - o multi-instrumentista americano Kishi Bashi publicou um EP nomeado "Emigrant" onde cabem três temas e duas versões, a saber, “Laughing With” de Regina Spektor e “Early Morning Breeze” de Dolly Parton que podem ouvir conjuntamente com "Waiting For Springtime", o primeiro dos inéditos a florir sem ser preciso esperar até ao equinócio de sábado!  

quarta-feira, 17 de março de 2021

FAZ HOJE (22) ANOS #54

















THE GIFT, Teatro Rivoli, Porto, 17 de Março de 1999 
. Público, por Amílcar Correia, fotografia de Paulo Pimenta, 19 de Março de 1999, p. 24

JAY-JAY JOHANSON, TESTE POSITIVO!






















Chega sexta-feira o décimo terceiro álbum da carreira de Jay-Jay Johanson no que parece ser, outra vez, um mergulho interior de análise psíquica traduzida para canções, como sempre, luxuosas. Deu-lhe o nome de "Rorschach Test" numa alusão ao conhecido teste do borrão de tinta ou manchas usado pela psicanálise na difícil tarefa de conhecer a mente nos seus medos, virtudes ou anseios e que tem expressão no próprio desenho de capa de algumas edições do disco. Aqui ficam duas das projecções positivas... 


terça-feira, 16 de março de 2021

(RE)LIDO #94






















A MIÚDA DA BANDA / Girl In A Band
de Kim Gordon. Lisboa; Bertrand Editora, 2016 
Os trinta anos de vida (1981-2011) dos Sonic Youth são, por si só, um feito de imediato reconhecimento e demorada vénia. A surpreendente separação matrimonial de Thurston Moore e Kim Gordon nesse último ano para espanto generalizado, entre acusações públicas de traição e outros pecadilhos, levou ao finar de uma banda que se julgava uma fortaleza de noise rock alternativo continuamente activa, desprendida e arrojada. A tal miúda da banda, que se transformou numa guitarrista baixo de imagem icónica e forte influência no avant-garde lírico e experimental do projecto, acabou nessa altura a cortar o cordão umbilical coberto de uma espessa e acumulada camada de desilusão e desamor numa ruptura posteriormente assumida como irreversível

Na decisão de relatar tão longa e influente contribuição para os SY, este amargo episódio é como que arrumado logo no início do livro - a cidade é São Paulo, o evento é o último concerto da banda perante uma multidão à chuva que conhecia já alguns dos contornos da separação e que Gordon, apesar do mau estar, não tenta sacralizar. A culpa assenta na traição vinda do outro lado, uma atitude descrita como patética e juvenil que simultaneamente a enerva e resigna. Adiante, que há muitas outras histórias interessantes para narrar e revelar de forma consistente desde a infância no sul da Califórnia no final da década de sessenta, condicionada pela figura do pai e de Keller, o irmão mais velho descrito sem contemplações como sádico e arrogante, até ao mergulho no movimento artístico da baixa de Manhattan já nos anos oitenta e que a marcaria de forma indelével até aos dias de hoje. Notada é também a visibilidade, afiada dos dois lados, que o grunge acabaria por aportar e confundir a um casamento a viver na ruralidade de Northampton (Massachuttes), o nascimento da filha Coco e onde a personagem de Kurt Cobain, apesar de acarinhada, merece alguma distância punitiva. 

Com o aproximar do fim do livro, a vertente de artista visual que Gordon sempre praticou e cultivou ganha uma nova determinação e envolvimento na curadoria de exposições para museus europeus e americanos e um alargar de horizontes musicais, nomeadamente, o experimentalismo sonoro partilhado ao lado de artistas e amigos como Ikue Mori, tal como testemunhamos em Guimarães, logo em 2012, numa estranha mas intensa improvisação. Falta juntar um reticente carreira de actriz, sempre de forma low-profile respondendo a convites espaçados de Todd Haynes ou, há três anos, de Gus Van Sant. 

Estamos, assim, perante uma arrojada poliartista sem receios do ensaio ou experiência mesmo que condicionada por alguma esquizofrenia, que controlou desde a juventude, e uma timidez assumida e misteriosa que faz do seu exemplo feminino um caso único de sobrevivência ao fim de quarenta anos de carreira sofrida mas vencedora. Este livro e o álbum "No Home Record", o primeiro a solo lançado em 2019 e com um video recente onde ganha protagonismo a filha Coco, são só a confirmação da fibra resistente de uma eterna lutadora.  


segunda-feira, 15 de março de 2021

ST. VINCENT, CARTUCHOS DE LUXO!






















O início do mês trouxe a novidade quanto a um novo álbum de St. Vincent a sair em Maio e que recebeu o título de "Daddy's Home", uma alusão à viagem de regresso a casa de 2019 em que acompanhou o pai saído da prisão ao fim de nove anos e que mereceu ainda uma canção com o mesmo nome. Do disco, iniciado por Annie Clark nessa altura e de que se conhece o primeiro single "Pay Your Way In Pain", para além de versões digitais estão disponíveis os habituais formatos físicos de vinil de luxo, picture-disc, CD, cassete e cartucho! Pára o baile, cartucho? 

Sim, o formato de fita 8 track está em revival acelerado (ainda há por aí leitores nos carros ou em casa? É só procurar...) e da brincadeira nada barata (35£) só foram fabricados quinhentos em variadas cores e um único exemplar dourado. Quem estiver interessado que se despache porque quanto às cassetes, essas já esgotaram!

sexta-feira, 12 de março de 2021

SEMPRE QUE BRILHA O SOL!






















Um ano! Fará amanhã um ano que nos recolhemos obrigatoriamente em casa à custa da chegada séria de uma pandemia longa e ardilosa. A música, o negócio a ela associado de artistas, músicos, técnicos, concertos, teatros, clubes, bares, discos ou editoras, sofreu e continua a sofrer um impacto avassalador de difícil recuperação e que nem mesmo a rápida reinvenção de estratégias e desafios de ligação ao público e consumidores tem conseguido disfarçar. Ela continua, no entanto e como sempre, a ser essencial nas nossas vidas mas agora, mais que nunca, insubstituível para que a cabeça se mantenha levantada, firme e arejada. 

O programa de desconfinamento anunciado para os próximos meses sugere algum optimismo em que queremos muito acreditar, seguros que teremos sempre na música uma vitamina de dosagem crescente e sem qualquer reacção adversa a não ser o prazer. É o caso da colectânea editada pela Colemine no final de 2020 chamada "Brighter Days Ahead" que reúne vinte e dois artistas dos dois seus selos (Colemine e Karma Chief) e que é um repositório retro de soul e funk de irresistível brisa e esperança em melhores e brilhantes tempos de sol radiante e confiança reforçada. Saúde!       

DUETOS IMPROVÁVEIS #235

SHARON VAN ETTEN & JOSH HOMME 
(What's So Funny) About Peace and Understanding (Nick Lowe) 
Home video, Maio de 2020 
  

quinta-feira, 11 de março de 2021

MARINA ALLEN, NEM É PRECISO MARINAR!






















Ao simples nome de Marina Allen não é conhecida qualquer ligação genética-musical mas quando se escutam as canções associam-se, de imediato, outras vozes femininas mais antigas como Karen Carpenter, Laura Niro ou Joni Mitchell e que se estendem até aos arranjos pop de Kate Bush. A estreia nos discos grandes com "Candlepower" tem data marcada para o fim de Maio na Fire Records, casa doutros projectos ao gosto como Vanishing Twin, Brigid Mae Power ou Orchestra Of Spheres, uma primeira colecção de sete temas arty de melodiosa subtileza e consumo imediato. 

A produção muito própria dos videos dadá para o primeiro single "Oh, Louise" ou o mais antigo "Belong Here" e até a imagem de capa retro a roçar o kitsch confirmam uma intencionalidade de mexer com o passado de forma assumida mas o tempo é uma grandeza física imune ao amor, ao medo ou à liberdade inspiradoras das canções. Um nome a fixar e sem ser preciso marinar!  


UAUU #581

quarta-feira, 10 de março de 2021

ALDOUS HARDING, UMA RENOVAÇÃO!

No âmbito da comemoração dos quarenta anos da 4AD será editada até ao final do mês uma dose semanal de versões escolhidas a partir do catálogo antigo da editora. São dezoito reinterpretações no total onde surgem, por exemplo, os Efterklang vs Piano Magic, Dry Cleaning vs Grimes, Big Thief vs The Breeders, Bing & Ruth vs Pixies ou Sohn vs Tim Buckley. 

A lista e a encomenda de "Bills & Aches & Blues", assim se chamará a compilação, pode ser desde já confirmada e há uma dose dupla de Deerhunter escolhida por Helado Negro e pela menina Aldous Harding que adornou, da melhor maneira, este "Revival". Que boa renovação!

FAZ HOJE (16) ANOS #53















RUFUS WAINWRIGHT + KEANE, Coliseu dos Recreios, Lisboa, 10 de Março de 2005
. Diário de Notícias, por Nuno Galopim, fotografia de Leonardo Negrão, 12 de Março de 2005, p. 42 
. Público, por Eurico Monchique, fotografia de João Cortesão Gomes, 13 de Março de 2005, p. 42


3X20 MARÇO

terça-feira, 9 de março de 2021

(RE)LIDO #93






















DEVOCÃO / Devotion
 
de Patti Smith. Lisboa: Quetzal, 2019 
Porque escrevemos? A solução para a pergunta de Patti Smith na última parte deste livro vão ter que a procurar ali mesmo ou então, aconselhado, imaginar uma resposta. Sentimos que esta contínua necessidade de publicar as suas memórias tem nessa dúvida o motivo resistente para viajar, no caso, pela Europa, conhecer-lhe as ruas estreitas, ler biografias de autores preferidos (Simone Weil ou Mondiano p. ex.) e visitar os seus túmulos enquanto, a qualquer momento, a inspiração permite a ficcão e um inesperado romance, cujo título lhe surge sulcado numa lápide funerária ("Devouement"), iniciado de forma manuscrita numa de muitas viagens de comboio entre olhadelas de véspera a uma televisão a transmitir uma prova de patinagem artística...

A história de uma jovem patinadora de gelo obcecada pela prática da sua arte em plena natureza surpreende pelo abrupto final mas, até lá, a busca das suas origens obscuras, as razões da parca herança familiar e o encontro de um "mecenas" apaixonado pela graciosidade dos seus movimentos, conduzem-nos a um trilho imprevisível de conivência, desamor e acentuado desencanto que só peca pela escassez de páginas, talvez a aguardar uma sequela futura e um semelhante adensar do mistério.

De regresso às deambulações criativas, é Paris e o sul do país, casa e refúgio de Camus, que aprofundam as razões do vício da escrita numa relação de amor antiga pela cultura francesa e o seu esplendor vibrante e agregador de literatura, arquitectura ou história que chega para encher diversos cadernos de apontamentos em cafés, comboios ou quartos de pequenos hotéis. Confissões sinceras sobre a incontornável França e a sua secular aura cultural num "livro francês" que, mesmo sem referências ao rock ou à música, confirma uma fascinante e inquieta autora que não é de nenhum país mas, simplesmente, do nosso mundo.               


FLEET FOXES DE SECRETÁRIA (CASA)!

segunda-feira, 8 de março de 2021

MARIANNE FAITHFULL, PARA A ETERNIDADE!






















O sorriso aberto de Marianne Faithfull protegida pelo conforto de Warren Ellis e coroada pela palavra "Eternity" que a imagem evidencia é, por si só, uma luminosa bênção. Atingida pela Covid 19 em Março último, a colaboração com uma série de músicos e amigos tinha, pouco tempo antes, abordado uma selecção de poemas românticos de alguns autores ingleses do século XIX como Lord Byron, John Keats, Thomas Hood ou Percy Bysshe Shelley no sentido de concluir um álbum de poesia e música. A colecção viria a ser terminada depois de uma recuperação demorada e difícil e para a qual Ellis compôs a base instrumental convocando Nick Cave para o piano, Vincent Ségal para o violoncelo e Brian Eno que aportou, à sua maneira, sonoridades ambientais para os poemas "La Belle Dame Sans Merci” de Keats e “The Bridge of Sighs” de Hood. O disco terá edição pela BMG em final de Abril e conta com pinturas de adequada dimensão poética, usadas na capa e nos videos, do amigo de longa data Colin Self.

Estamos, assim, perante um trabalho de reinvenção da palavra dita que aparenta ser o fechar de um círculo iniciado em 2018 com "Negative Capability", marcante conceito usado por Keats em 1817 explicado recentemente por José Tolentino de Mendonça, trabalho que juntou também Ellis e Faithfull nas canções ao lado de um outro mago, Rob Ellis. Apetece ainda e sem rodeios, sugerir a audição obrigatória do mais recente "Carnage" de Nick Cave e Warren Ellis como prévio complemento espiritual até à chegada primaveril de "She Walks In Beauty", álbum de eternidade previsível!  

BILLY NOMATES, IMPARÁVEL!

Temos, desde sempre, dado primazia às vozes femininas da chamada música alternativa, nomeadamente, no folk americano, canadiano, australiano ou inglês mas há uma notória lacuna avocada no que ao rock diz respeito. Uma das últimas surpresas vem de Bristol, chama-se Tor Maries mas assumiu-se desde 2019 como Billy Nomates, nome de combate que resvala para alguma afronta ao machismo instalado e a uma personalidade vincada e determinada. O homónimo álbum de estreia em 2020, produzido pelo conterrâneo Geoff Barrow dos Portished, apresenta uma boa mão cheia de temas no-wave que acertam bem no centro de uma rudeza punk resistente e sempre bem vinda que ganha contornos de hino em "Supermarket Sweep", três minutos de slogans pertinentes ao lado dos heróis Sleaford Mods, parceria retribuída em "Mork'n Mindy" incluída no disco dos de Nottingham também do ano passado

Com a digressão suspensa, a promoção necessária tem sofrido adiamentos sucessivos (chega a Espanha, sem certezas, em Outubro próximo) mas não há lugar a lamentos - prova-o o novo EP "Emergency Telephone" saído esta semana e que mereceu, na impossibilidade de ajuntamentos, uma apresentação a solo e à distância no The Louisiana, recanto obrigatório da música ao vivo da natalícia Bristol. Imparável e madura, ficamos à espera de mais alguns "murros" de nocaute certeiro e, segundo a própria, com uma convicção: "In a world of Yes Men, I’ll be a No Woman, thanks"!



MARIA JOÃO PIRES, TALENTO DE ALTA DEFINIÇÃO!















Na data em que se assinala o Dia Internacional da Mulher, o notável canal francês Mezzo apresenta uma programação especial onde se destaca o concerto da nossa talentosa Maria João Pires em directo da Fondation Singer-Polignac de Paris. Marcado para as 20h00 (19h00 em Portugal), serão apresentados ao longo de uma hora e meia peças de Franz Schubert (Piano Sonata in A major D. 664) e Claude Debussy (Suite bergamasque). 

O canal emite em alta definição através da posição 116 da Vodafone, 163 da NOS e 141 da MEO. Uma dádiva imperdível e um verdadeiro serviço público à escala europeia!

sexta-feira, 5 de março de 2021

PVC - PORTO VINIL CIRCUITO #25






















Dando seguimento à ronda de discotecas do Porto e arredores, falamos hoje da cadeia Twist com loja principal no Centro Comercial Parque Italia, na Rua Júlio Diniz no Porto. Teve ainda duas filiais, uma em Matosinhos no Centro Comercial Newark e uma outra na mesma morada do supermercado Pão de Açucar da Avenida da República de V. N. De Gaia. Hoje, no local com o número 1182 está um Pingo Doce que retomou algumas lojas da cadeia pioneira em Portugal no final da década de oitenta, coabitando com outras pequenas lojas como se pode constatar pelas fotografias mas, obviamente, sem qualquer discoteca por perto. 

Nessa altura, na Twist a venda de discos em CD deveria ser uma actividade em franco crescimento, extensível ao malogrado Laser Disc e incluía também um videoclube mas, certamente, o vinil seria ainda o formato principal do negócio. No caso, calhou-nos no interior do envelope da filial de Gaia os ingleses Bucks Fizz com "Making Your Mind Up", a canção vencedora do Festival da Eurovisão em 1981 e dos quais nunca mais ouvimos notícias...
Twist, Av. da República, 1182, V. N. de Gaia
Twist, Av. da República, 1182, V. N. de Gaia














KINGS OF LEON, O ROCK (AINDA) É MEMO BOM!





















A notícia está em todo o lado - os Kings of Leon vão fazer história no dia de hoje ao ser a primeira banda a lançar um álbum em formato NFT, um método cripotográfico infalível que permite vender e comprar arte e media digital e que envolve o tal de bitcoin. Não nos façam perguntas que não queremos mesmo saber mas fomos ouvir o disco como é de bom tom há quase vinte anos! 

Vamos ao que interessa. O oitavo trabalho "When You See Yourself" é um salutar momento de reconversão e gozo a que os KOL sempre nos habituaram mas que tinha vindo a deslizar, gordurosamente, nos últimos anos. Como uma das últimas bandas rock a que vamos resistindo sem desistir, há nele uma catadupa de grandes canções de travo americano a fazer-nos recuar à primeira década deste século, férias ao sol sudoeste, passeios de bicicleta e muita galhofa entre amigos. Que saudades... e muito rock do bom como o destes três grandes temas a que se pode acrescentar "Golden Restless Age" ainda sem audição disponível! 



quinta-feira, 4 de março de 2021

SHARON VAN ETTEN, SETE VERSÕES!

De Sharon Van Etten, como já por aqui demos conta, há que esperar boas notícias todas as semanas. Desta vez trata-se de uma comemoração alusiva aos dez anos do segundo álbum "Epic", saído em Setembro de 2010 e que terá reedição em vinil duplo já que num segundo disco estarão sete versões inéditas das sete canções originais! Em Abril, aquando do lançamento, a evocação terá direito a duas noites de concertos (dias 16 e 17) com banda no Zebulon de Los Angeles em formato de streaming e onde será projectado um pequeno documentário sobre a gravação original do disco e se executarão na íntegra as sete canções originais e, talvez, algumas parcerias.   

Depois de já ter feito versões de , por exemplo, The Smiths, LCD Soundsystem, Nick Cave, Bruce Springsteen, Tom Petty, The Beach Boys ou Vic Chesnutt em sessões ao vivo, de rádio ou outras, chegou a hora de reinventar temas da sua autoria com a colaboração dos Idles ("Peace Signs"), Shamir ("DsharpG"), Courtney Barnett ("Don't Do It"), St. Panther ("One Day"), Fionna Apple ("Love More") e Big Red Machine ("A Crime"), a primeira a ser divulgada e que conta com a ajuda da dupla desse projecto, ou seja, Justin Vernon e Aaron Dressner.

UAUU #579

ÓLAFUR ARNALDS DE SECRETÁRIA (CASA)!

quarta-feira, 3 de março de 2021

NEAL FRANCIS, É TEMPO DE MUDANÇAS!






















O magnífico álbum "Changes" que marcou a estreia de Neal Francis pela inestimável Colemine em 2019 tinha vários temas retro agitadores de qualquer pista de dança. O preferido, o que dá nome ao disco, mereceu em boa hora um 7" de vinil que em breve terá um outro complemento - um 12" contendo quatro demos, incluindo essa, para distribuir a partir desta semana e que antecipa, de certeza, novo disco ainda este ano e uma digressão urgente, desde que autorizada...

terça-feira, 2 de março de 2021

DAMIEN JURADO, QUATRO EM QUATRO!

                               
















Dando continuidade a uma série imparável de discos, anuncia-se um novo álbum de Damien Jurado, o décimo sétimo da carreira e o quarto nos últimos quatro anos! Para isso, foi criada uma editora própria baptizada de Maraqopa Records, casa que fará o obséquio de fazer sair "The Monster Who Hated Pennsylvania" em Maio próximo com dez temas inéditos e outras tantas histórias de forte intensidade sobre pessoas que não cedem apesar das circunstâncias, e que circunstâncias! 

O álbum foi auto-produzido em ambiente caseiro e inspirado por antigos trabalhos de Paul McCartney ("Ram", 1971) ou Lou Reed ("The Bells", 1979), tendo recebido a contribuição decisiva do multi-instrumentista Josh Gordon, músico que o acompanhou na última digressão que o trouxe ao Theatro Circo de Braga em Outubro de 2018. Na capa plasma-se uma fotografia elucidativa obtida pelo amigo Tom Roelofs durante essa mesma tournée, um portefolio que contemplou alguns instantâneos memoráveis no Bom Jesus bracarense e, quem sabe, nalguma escada interior das redondezas. Ouça-se o primeiro single "Helena" já a rezar para que na agenda da digressão europeia a partir de Outubro, onde se incluem três visitas ao país vizinho, o nosso jardim seja abençoado...

(RE)LIDO #92






















LET'S GO (SO WE CAN GET BACK) 
A MEMOIR OF RECORDING AND DISCORDING WITH WILCO, ETC. 
de Jeff Tweedy. London: Faber & Faber, 2019 
Com a chegada dos cinquenta anos a vida merece, para alguns, um necessário balanço. No caso de Jeff Tweedy, a corajosa decisão por uma autobiografia demonstra, certamente, uma paz de espírito que não inibiu revelações, confissões e desabafos pessoais de elevada intimidade e sofrimento que desde cedo o apoquentaram. A doença em causa, enxaquecas contínuas e duradouras, tornou a música numa paixão única de insistente afecto e determinação mas também um problema de difícil superação que só uma boa dose de humor narrativo acaba por disfarçar e valorizar. Por vezes, essa capacidade de auto-crítica sarcástica e até venenosa poderá sugerir ao leitor mais desatento alguma arrogância mas sente-se pela abordagem a muitas das passagens do livro que a sinceridade utilizada não se compadece com "bicos-de-pés" irrelevantes de um papel de pop-star que não quer nunca vestir. Custosas, com certeza, as assumidas limitações, dependências e conflictos habituais quando se forma uma banda, quando se despede um companheiro de palco ou quando não se consegue escrever a canção perfeita embora essa seja matéria misteriosa de um livro da sua autoria de edição mais recente vocacionado para dar uma possível resposta. Mas e que tal chamar os bois pelos nomes?
 
Os problemas são, diremos, de dois tipos - profissionais e familiares, como sempre. Os primeiros, vertidos desde cedo numa relação tensa com Jay Ferrar com quem fundou os Uncle Tupelo ainda na década de oitenta e que levou em 1994, com sua saída, à formação dos Wilco. A hostilidade notória teve confrontos difíceis de compreender mesmo que no tom e modos utilizados por Tweedy transpareçam, em simultâneo, respeito mútuo, remorsos e, sobretudo, alívio. Com este episódio concluído, o livro ganha novo fôlego na forma como sinaliza o crescimento sustentado da banda, mesmo ensombrada pela morte de Jay Bennett, a composição das canções ou a liberdade de conceitos e abrangência criativa a aplicar aos sucessivos álbuns. São lacunares, contudo, referências mais específicas à relação e cumplicidade com os outros elementos dos Wilco e que só o aproximar do fim acelera tenuemente nalgumas revelações. Esse é também o momento para falar de outros músicos-heróis, no caso, episódios saborosos com Dylan, Cash e a amiga Mavis Staples para quem escreveu e gravou discos inteiros.

Mais transcendentes e cândidos afiguram-se os altos e baixos da vida em família, a juventude no Illinois e uma caixa de vinis de 7" herdada da irmã cheia de artistas e canções, a rudeza de uma relação pai-e-filho (é do pai a expressão que dá título ao livro) ou o amor pela mãe decisiva no impulso e apoio artístico. Há por aqui um despego estranho mas revelador na forma como se pode descrever a perca da virgindade aos 14 anos ou o primeiro encontro e beijo com a actual esposa em forma de banda-desenhada nas páginas centrais, local onde costumam estar, e não estão, fotografias de escola, do primeiro emprego ou do concerto iniciático. Quando Tweedy imagina diálogos com a mulher Sue sobre um grave problema de saúde ou com o filho Spencer de como tocar melhor bateria, a sua personalidade parece não respeitar a família de que tanto gosta e precisa, mas essa informalidade casuística é afinal a arma certa para espantar nuvens negras ou resolver dúvidas, creditando os leitores como testemunhas respeitados. No fundo, confessando que as suas limitações e depreciações são também fundamentais para continuar a fazer o que gosta - escrever canções, muitas - a olhar para trás, não pelo retrovisor da memória, mas a cantar as letras de muitas delas como, por exemplo, "On And On And On" sobre o pai falecido ou "Jesus. Etc" que, não sendo sobre o 11 de Setembro, é como se tivesse esse predestino. Um livro magnífico e que tem o condão, que julgávamos impossível, de ficarmos a gostar dos Wilco ainda e cada vez mais!


SQUID, QUE RICO RECHEIO!

















Se, por acaso, à clássica pergunta "qual vai ser o nome da banda?" surgir a resposta "lula", isso só pode ser levado na brincadeira. No caso dos Squid, cinco jovens ingleses de Brighton que apostaram no molusco marinho da classe cefalópode, os tais que têm os pés na cabeça, é bem capaz de ser um equívoco irreverente que talvez remeta para um calão mais rebuscado da mesma palavra em que se goza com um "aselha ao volante"... 

Isto porque as canções que fazem, desde o primeiro single "Perfect Teeth" de 2016, nada têm de aselhice e constituem um motivo de orgulho na reconversão muito em voga do pós-punk e do jazz-rock traduzida num segundo EP em 2019 com prolongamento no álbum de estreia já agendado para Maio pela reputada Warp Records. Desse "Bright Green Field" pode ouvir-se "Narrator" como saborosa amostra de consistência e recheio.

Para que o teste seja completo haverá (?) concerto em Paredes de Coura no dia 18 de Agosto ou, em caso de indisponibilidade, uma hipótese de saltada (30 de Outubro) a Vigo onde se adivinha casa cheia (Master Club) para um espectáculo em nome próprio mas ainda sem bilhetes à venda e onde o centro das atenções "nada punk", tal como os Black Midi (Primavera Sound Porto, 10 de Junho), será o inusitado baterista/vocalista!