terça-feira, 2 de março de 2021

(RE)LIDO #92






















LET'S GO (SO WE CAN GET BACK) 
A MEMOIR OF RECORDING AND DISCORDING WITH WILCO, ETC. 
de Jeff Tweedy. London: Faber & Faber, 2019 
Com a chegada dos cinquenta anos a vida merece, para alguns, um necessário balanço. No caso de Jeff Tweedy, a corajosa decisão por uma autobiografia demonstra, certamente, uma paz de espírito que não inibiu revelações, confissões e desabafos pessoais de elevada intimidade e sofrimento que desde cedo o apoquentaram. A doença em causa, enxaquecas contínuas e duradouras, tornou a música numa paixão única de insistente afecto e determinação mas também um problema de difícil superação que só uma boa dose de humor narrativo acaba por disfarçar e valorizar. Por vezes, essa capacidade de auto-crítica sarcástica e até venenosa poderá sugerir ao leitor mais desatento alguma arrogância mas sente-se pela abordagem a muitas das passagens do livro que a sinceridade utilizada não se compadece com "bicos-de-pés" irrelevantes de um papel de pop-star que não quer nunca vestir. Custosas, com certeza, as assumidas limitações, dependências e conflictos habituais quando se forma uma banda, quando se despede um companheiro de palco ou quando não se consegue escrever a canção perfeita embora essa seja matéria misteriosa de um livro da sua autoria de edição mais recente vocacionado para dar uma possível resposta. Mas e que tal chamar os bois pelos nomes?
 
Os problemas são, diremos, de dois tipos - profissionais e familiares, como sempre. Os primeiros, vertidos desde cedo numa relação tensa com Jay Ferrar com quem fundou os Uncle Tupelo ainda na década de oitenta e que levou em 1994, com sua saída, à formação dos Wilco. A hostilidade notória teve confrontos difíceis de compreender mesmo que no tom e modos utilizados por Tweedy transpareçam, em simultâneo, respeito mútuo, remorsos e, sobretudo, alívio. Com este episódio concluído, o livro ganha novo fôlego na forma como sinaliza o crescimento sustentado da banda, mesmo ensombrada pela morte de Jay Bennett, a composição das canções ou a liberdade de conceitos e abrangência criativa a aplicar aos sucessivos álbuns. São lacunares, contudo, referências mais específicas à relação e cumplicidade com os outros elementos dos Wilco e que só o aproximar do fim acelera tenuemente nalgumas revelações. Esse é também o momento para falar de outros músicos-heróis, no caso, episódios saborosos com Dylan, Cash e a amiga Mavis Staples para quem escreveu e gravou discos inteiros.

Mais transcendentes e cândidos afiguram-se os altos e baixos da vida em família, a juventude no Illinois e uma caixa de vinis de 7" herdada da irmã cheia de artistas e canções, a rudeza de uma relação pai-e-filho (é do pai a expressão que dá título ao livro) ou o amor pela mãe decisiva no impulso e apoio artístico. Há por aqui um despego estranho mas revelador na forma como se pode descrever a perca da virgindade aos 14 anos ou o primeiro encontro e beijo com a actual esposa em forma de banda-desenhada nas páginas centrais, local onde costumam estar, e não estão, fotografias de escola, do primeiro emprego ou do concerto iniciático. Quando Tweedy imagina diálogos com a mulher Sue sobre um grave problema de saúde ou com o filho Spencer de como tocar melhor bateria, a sua personalidade parece não respeitar a família de que tanto gosta e precisa, mas essa informalidade casuística é afinal a arma certa para espantar nuvens negras ou resolver dúvidas, creditando os leitores como testemunhas respeitados. No fundo, confessando que as suas limitações e depreciações são também fundamentais para continuar a fazer o que gosta - escrever canções, muitas - a olhar para trás, não pelo retrovisor da memória, mas a cantar as letras de muitas delas como, por exemplo, "On And On And On" sobre o pai falecido ou "Jesus. Etc" que, não sendo sobre o 11 de Setembro, é como se tivesse esse predestino. Um livro magnífico e que tem o condão, que julgávamos impossível, de ficarmos a gostar dos Wilco ainda e cada vez mais!


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