terça-feira, 30 de março de 2021

(RE)LIDO #96






















NÃO DÁ PARA FICAR PARADO 
Música afro-portuguesa. Celebração, conflito e esperança 
de Vítor Belanciano. Porto: Edições Afrontamento, 2020 
A raiz africana de muita da música moderna portuguesa não têm até hoje um estudo sociológico de referência que lhe trace uma teoria ou uma impossível explicação única. Acentuaram-se, é certo, os estudos académicos ou universitários com enfoque na última década já que é nela que reside uma maior visibilidade mediática com a massificação do chamado kuduro e, ultimamente, da kizomba. Notamos a transformação quando picamos, por exemplo, mais a sério a rádio pública Antena 3 ou quando, involuntariamente, a música ambiente de uma loja chinesa insiste na toada melosa e adoçada sem sabermos quem toca ou diz enquanto a funcionária lá vai cantarolando a letra sabida de cor. 

Somos do tempo, já adultos, das "Gravuras Não Sabem Nadar" dos Black Company e do pioneirismo do General D mas confessamos um alheamento assumido para com o chamado hip-hop nacional maioritariamente lisboeta ou com base nortenha, seja por defeito no enredo seja por falta de contexto, arrasto ou onda de proximidade. O género merece-nos o máximo de respeito, fomos ao Coliseu com agrado ver os De La Soul e o Sam The Kid (2003?) e até nos divertimos com a M.I.A. em Coura (2007) e os The Weekend (2012), o Kendrick Lamar (2014), os Run The Jewels (2017) ou o Tyler the Creator (2018) no parque da Cidade da Invicta mas dos restantes quejandos inferiores, e não foram poucos nas últimas edições do Primavera Sound, mantivemos imediata distância que se estendeu a hypes sul-americanos ou castelhanos insuflados por uma certa imprensa internacional. Pecado? Desprezo? 

Talvez a culpa tenha sido de um tal de Diplo numa massacrante e já longínqua (2007) madrugada por Serralves o que não matou, contudo, a nossa curiosidade sobre o fenómeno e todas as suas derivações locais a requerer compêndio de vocabulário e outros esclarecimentos para "velhos" cinquentões. As mais de sessenta entrevistas ou conversas que Vitor Belanciano manteve com muitos dos protagonistas da dita música afro-portuguesa nas primeiras duas décadas deste século, muitas delas impressas no jornal "Público", conferem a este livro uma certificação de origem carimbada e uma utilidade ao nível de um dicionário técnico consultável. Percebe-se o seu gosto, a amizade e até a intimidade com alguns desses projectos de matriz autodidacta, corajosa e reactiva centrada numa segunda e terceira geração de agitadores artísticos de nacionalidade portuguesa com raízes familiares em África e que absorveram, desde cedo, os sons tradicionais ao gosto das cassetes ou discos guardados pelos mais próximos.  

É esse o fermento rítmico de muitas das sobreposições digitais de fabrico caseiro que, sem regras, surpreendem pela sujidade cruzada de cadências a que o corpo de muitos não resiste. Não conhecemos os bairros, não identificamos nenhum do beats, nunca estivemos numa noitada africana pela capital mas serve o livro para lhe sentir os rastos, as vicissitudes e conivências entre, por exemplo, Sintra e Nova Iorque muito por culpa do fenómeno Buraka Som Sistema, projecto progenitor de uma imensidão de ideias, aventuras e sucessos dispersos pela grande Lisboa e que se tornou num imparável laboratório anárquico de infusões inesperadas e reconhecimento internacional que se apegou até, entre controvérsias fúteis, à madame Madonna.          

Para lá da hipocrisia e da ambiguidade pós-colonial, constrói-se a partir da música uma história excitante e ainda incompleta de mistura e irrequieta socialização e que continua a ter na injustiça da realidade uma combustão natural e conflituosa a qualquer género musical, um guião de diversidade que pode e deve ser visualmente complementado por uma série de documentários já produzidos e projectados e onde se confirma, tal como no livro, que não vai dar para ficar parado.   



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