quinta-feira, 18 de junho de 2020

(RE)LIDO #88





















TOUCHING FROM A DISTANCE
Ian Curtis and Joy Division
de Deborah Curtis. London: Faber & Faber, 1995/2014
Na nossa "iniciação" ao mundo adulto da música, a lenda associada à figura de Ian Curtis e aos Joy Division esteve sempre distante de se transformar num mito. Da banda inglesa e do seu principal protagonista começamos a ouvir "histórias" e rumores muito antes de sequer ouvir a música à custa do colega do Liceu Rainha Santa Isabel a que nos habituamos a chamar Pedro Punk, figura alta e desengonçada de poupa no cabelo e mochila/livro pesado de madeira (!) às costas para guardar os cadernos e para servir de banco à espera do autocarro na Rua do Heroísmo! Estaríamos em 1982 ou 1983 e os discos do quarteto de Manchester seriam nessa altura uma raridade de circulação ínfima mas que se espalhava de forma invisível a partir de cassetes gravadas em casa de algum privilegiado. Era, então, das canções que aí se ouviam que o tal Pedro Punk não se cansava de falar e idolatrar pela poesia misteriosa ou a postura e raiva melancólica, uma aparente contradição com o "Punk's Not Dead" escrito nas costas do seu indispensável casaco-tropa do dia-a-dia. O jeito para contar outras histórias e lançar desafios inesperados aos professores, para risota geral, seriam já um sinal do irrequieto jornalista Pedro Sousa Pereira que vingaria profissionalmente com outros dotes artísticos. Quem diria!

Sobre essa época e da influência dos Joy Division na sociedade portuguesa há já estudos e conclusões óbvias, mas o nosso azimute haveria de centra-se na sequela que os New Order assumiriam ao longo da restante década e que, essa sim, sempre nos despertou muita atenção e prazer estendido a matineés e soirées dançantes e maxi-singles e álbuns ouvidos de fio a pavio. Para trás, escondidos e esquecidos, ficavam os pormenores das atribulações de uma banda, de uma vida e de um consequente suicídio.

Em 1995, quando o burbuinho surgido com a publicação deste livro por parte da viúva Deborah Curtis começou a fervilhar - revelações inéditas e, diziam, de afronta aos fãs pelas sugestões de racismo, nazismo ou maledicência do marido - ainda compramos a versão traduzida por Ana Cristina Ferrão editada logo no ano seguinte na mítica colecção "Rei Lagarto" da Assírio & Alvim mas a obra ficaria espalmada e incólume na estante ao lado de outros da mesma série. Seria o magnífico filme "Control" de 2007 realizado por Anton Corbjin que faria o obséquio de nos aproximar, definitivamente, a este personagem de estranheza sedutora a partir de uma abordagem cinematográfica sufocante sobre Ian Curtis baseada no relato e contributo especial da esposa, película que já revemos várias vezes. Ficava a faltar, pois, o documento original que, quarenta anos depois da morte (18 de Maio de 1980) e quase o mesmo tempo (18 de Julho de 1980) sobre a edição póstuma de "Closer" (há reedição de vinil transparente a caminho), mereceu leitura recatada e calma em tempos de isolamento.

Com um novo prefácio a cargo do baterista Stephan Morris, talvez o elemento mais discreto do quarteto mas o menos conflituoso, o livro dedicado à filha Natalie é, para sempre, um acto de amor. Inverte-se a percepção habitual de ver num filme as imagens produzidas pela leitura de um livro e podemos até ter dúvidas sobre alguns dos factos - por exemplo, o sonho abruptamente cortado pela falsa audição de "The End" dos Doors na véspera do suicídio - mas a tensão crescente da narrativa sem ser surpreendente é sedutora na coragem de descrever as vicissitudes da incerteza num amor recíproco, no adensar do adultério, do divórcio intermitente, da epilepsia e dependência médica desconhecida mas, acima de tudo, no eterno mistério em saber de facto quem era Ian Curtis.

Depois há os indispensáveis figurões que pairam e pressionam a banda do ponto de vista do "negócio". Robert Gretton ou Tony Wilson são, por aqui, personagens também eles quase cinematográficos como aconteceu, aliás, com este último em "24 Hour Party People", mas tal como no filme e à medida que as páginas avançam, a tensão começa a estremecer com o dealbar de uma tragédia anunciada e a quem ninguém pareceu evidente. E se..., claro, e se... mas os sinais largados por Curtis desde muito cedo para uma destinada e antecipada morte como que se haveriam de se juntar num epitáfio imagético mais que preparado para a capa do single "Love Will Tear Us Apart", uma sedução pela glória que ainda hoje nos toca profundamente. Como cantou um dos seus ídolos de juventude Fame, it's not your brain, it's just the flame...


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