terça-feira, 17 de novembro de 2020

(RE)VISTO #79






















PJ HARVEY - A DOG CALLED MONEY
 
de Seamus Murphy. Irlanda/Reino Unido, Blinder Films/Pulser Films, 2019 
TVCine Edition, Portugal, 13 de Novembro de 2020 
Em 2016, aquando do lançamento e posterior desfrute de "The Hope Six Demolition Project", o nono e magnífico álbum de PJ Harvey, o travo das canções assumia uma vertente política incisiva e crítica de elevada pertinência perante o aumento das desigualdades e injustiças de um mundo global cada vez mais extremado, uma tendência que o disco anterior "Let England Shake" (2011) não disfarçava. Houve quem não gostasse, houve quem lamentasse mas o certo é que os temas então escritos, não o sabíamos, tiveram inspiração directa e presencial em cenários caóticos de guerra como a Bósnia, a Síria ou o Afeganistão ou outros territórios de desequilíbrios encapotados como Washington, a capital americana aparentemente pacífica mas onde a guetização e o racismo aguçam, sem fim à vista, a faca da revolta traduzida no próprio título do disco. 

Notou-se esse grito de alerta aquando da passagem da artista e do seu fiel grupo de músicos pelo Primavera Sound no mesmo ano, uma efervescente perfomance de Polly Harvey que uma grande parte da legião de fãs não pareceu compreender na angústia de não ouvir os temas antigos - ali, na imensidão escura do parque portuense, temas como "Dollar, Dollar" ou "The Ministry of Social Affairs" ecoaram bem alto uma tensão libertadora que, afinal, não disfarçava a realidade nua e crua que a própria tinha visto bem de perto. Antes de iniciar todo o processo de gravação sofisticado e impoluto, visitou de caderno na mão, como referido, diversos locais e latitudes com o objectivo de conversar e ouvir pessoas e grupos e deixar que as histórias inspirassem as letras das suas canções na companhia de Seamus Murphy, fotógrafo e realizador que filmou tão brilhantemente esses momentos transpostos para este documentário. 

De regresso a Londres, as palavras converteram-se em poemas e os poemas em canções gravadas durante cinco semanas num alvo cenário/estúdio construído na cave da Sumerset House e onde alguns grupos de interessados, sem se verem mutuamente, puderam assistir através de vidros às sessões durante quarenta e cinco minutos. A este processo, chamado "Recording in Progress", traduzido num género de mural de papel com as anotações preenchidas pela artista com o pormenores dos arranjos ou outras subtilezas, o filme dá uma atenção informal e não extensiva onde emerge uma camaradagem e compromisso divertido apesar do peso eventual das temáticas abordadas pela canções em gravação. Nesse contraste, Harvey, de preto, sempre de preto, comanda um grupo de instrumentistas assinalável que é uma extensão flexível do seu talento e que continua a surpreender pela aparente simplicidade dos processos de composição e num treino de aprendizagem contínua e, percebe-se, motivador. 
 
São, contudo, as imagens no exterior deste estúdio, as tais captadas mundo fora, que acabam por envolver e sobrepor o documento com uma camada de realidade quase antropológica a que reagimos sem pestanejar pela sua dureza e beleza simultânea, traduzida num qualquer olhar desalentado, mas nada assustado, de um grupo de crianças afegãs (?) em frente a uma máquina de filmar ou os testemunhos em prosa rap de adolescentes americanos perdidos entre a droga e o crime e que, não sendo surpresa, nos ferem à distância. Quando uma das canções, a simbólica "The Community of Hope", é ensaiada a cappella numa igreja americana por um pequeno grupo coral e, potencialmente, transformada num hino de esperança, o filme já valeu a pena e todo o esforço e virtude de agitar o nosso íntimo e questionar-mos, sem resposta, de quanto tempo vai ser preciso para que tudo mude...  

Nota: circula no youtube uma versão do filme em regime, supostamente, ilegal mas com alguma qualidade. Aproveitem! 


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