de Abel Soares da Rosa. Lisboa: Âncora Editora, 2020
Vivemos tempos em que conceitos como liberdade de expressão, liberdade de imprensa ou opinião pública conduzem a inevitáveis discussões acaloradas onde a palavra "censura", qual maldição, serve levianamente ambos os lados da arguição. A vigência da censura, pura e dura, imposta em período de ditadura, foi em Portugal motivo de estudo ao longo das últimas décadas e, depois da abertura à consulta da totalidade dos arquivos da PIDE e de Salazar (1995), o manancial de informação conduziu necessariamente a uma maior especialização das abordagens e temáticas, embora o cinema, em particular, cedo tivesse motivado a curiosidade e demanda de alguns como Lauro António, autor largamente citado na corrente obra e para qual escreveu um texto introdutório, concretizado no incontornável "Cinema e Censura em Portugal" (1977). O assunto continua, mesmo assim, a ser um novelo sem fim de reconhecido interesse colectivo como se pode confirmar numa mais recente investigação académica (2013) coordenada por Ana Cabrera e que se estende também ao teatro ou neste livro dedicado aos filmes dos The Beatles.
À pergunta se "os Beatles foram censurados em Portugal?" a resposta é "Sim!". Prova-o o conteúdo transcrito e largamente reproduzido por Abel Rosa de forma exaustiva quanto às películas estreadas em território português, como também o provam, certamente, muitos cortes a notícias e críticas aos mesmos filmes, aos seus discos, atitudes ou comportamentos como, aliás, já atestamos por aqui anteriormente e que sustentam a ideia que os Beatles metiam medo, sim, muito medo!
O receio dos censores e, implicitamente, do regime quanto ao fenómeno, levou ao arrastamento da estreia da comédia "A Hard Day's Night" ou "As Quatro Cabeleiras do Após Calipso" em português, agendada para 1964 mas só concretizada no ano seguinte, anomalia noticiada em jornais de Liverpool que deram conta que a película tinha sido parcialmente censurada e destinada a maiores de 17 anos! Por incrível que pareça, o "problema" maior eram as expressões de êxtase e felicidade - "Atitudes descompostas e esgares" - que o(a)s jovens expressavam ao ouvir as canções da banda em cima do palco, uma suposta histeria que poderia conduzir a indesejadas manifestações da juventude portuguesa. A liminar proibição de exibição do filme pairou durante algum tempo pois seria bastante complicado - impossível! - realizar estes cortes em plena canção, passando depois a uma suspensão bastante comprometedora das aspiração da distribuidora Rank que via o lucro do negócio a fugir entre mãos alheias e que culminou, após bastantes insistências, numa tardia reclassificação etária (12 anos)... mas mantendo os cortes!
Todo este folhetim, documentado ao pormenor com a reprodução de alguns dos documentos originais, constitui, por si só, uma incrível e rocambolesca história que carimba a insensatez e ridículo a que qualquer actividade de controle totalitário foi e é sujeita, traduzida noutras minudências risíveis como uma piada parva sobre adultério, um decote feminino, uma dança do ventre ou a autorização sem cortes do filme "Yellow Submarine" em 1969 sem qualquer tipo de restrições, uma daquelas pérolas que questionam toda a credibilidade do sistema atendendo a que, mesmo sendo em desenho animado, o argumento e uma boa parte dos diálogos feriam notoriamente (basta o exemplo de "Eleanor Rigby") os valores exemplares tão cegamente defendidos pelo regime instalado.
Outros dois filmes - "Help! - Socorro!" de 1965 mas estreado em 1967 e "Let It Be - Improviso" de 1970 - são também motivo de análise documental pelo autor e que se alarga até a outras películas mais tardias e menos conhecidas onde participam músicos da banda. Em quase todos se percebe os contínuos empecilhos e subterfúgios que a Censura lançou sobre a promoção e difusão das imagens "perigosas" supostamente associadas aos The Beatles, adiando decisões ou inventando mal-entendidos para que "esses guedelhudos" se mantivessem à distância do cantinho sagrado desde que isolado. Houve quem quisesse contratá-los para um concerto em Lisboa em 1965 mas, sabe-se agora e confirma-se no livro, as sapientes autoridades portuguesas não permitiram tamanha afronta agitadora dos bons costumes e uma ameaça à dita "normalidade".
Orgulhosamente só mas, definitivamente, mais decadente e autocrático, o Estado Novo têm nestes exemplos de coação cinematográfica, que em boa hora foram reunidos neste simples mas prestimoso livro, um espelho da sua galopante e lastimável podridão, imagens proibidas que, quem sabe, acabem recuperadas ao jeito da sequência final do inesquecível "Cinema Paraíso"...
1 comentário:
Excelente texto sobre o meu livro... grande abraço.
ABel Rosa
Enviar um comentário