Lisboa; SPA-Sociedade Portuguesa de Autores/{Glaciar}, 2023
É assinalável a quantidade de livros e memórias sobre José Afonso editadas nos últimos anos. A juntar a algumas dessas novidades já por aqui destacadas, o fascínio pelo personagem remete para uma variedade de temáticas que contempla correspondência trocada, análise (necessária?) das palavras utilizadas nas letras das canções ou a abordagem a um suposto "triângulo mágico" em que girou a sua vida por Portugal, África e a Galiza. É só escolher. Foi o que fizemos.
Para terminar o destaque iniciado no início deste mês comemorativo, nada como uma biografia leve e bem feita que se aconselha, desde já, a jovens à procura de uma introdução à vida de José Afonso. A publicação faz parte de um projecto editorial incluído no processo comemorativo do centenário da fundação da SPA-Sociedade Portuguesa de Autores (Maio de 1925), destacando o papel de alguns deles na afirmação da cultura portuguesa, do teatro (Vasco Santana) ao cinema (Manoel de Oliveira) passando pela música. A eleição de José Afonso é, claro, lógica, atendendo à criatividade e ao exemplo de liberdade que sempre pautou a sua conduta imperfeita mas única. O título do esboço, confessamos, apressou a selecção...
Foi, pois, o "Eu Vou Pôr Lume e Ser de Vento" que, evocando, numa só frase, a luta e liberdade, nos despertou a atenção numa estante de livraria. Não a reconhecemos de imediato entre as letras originais de Afonso embora na canção "Qualquer Dia" do álbum "Contos Velhos Rumos Novos" (1969) parte do verso seja bem audível, sendo o restante inúmeras vezes usado em poesia ou narração.
O metaforismo, que sugeria uma abordagem poética ou romanceada, é um ponto de partida curioso para se dar a conhecer, em onze partes, uma substancial panorâmica da vida de José Afonso em todas as suas fases e desenlaces, da infância ao adeus prematuro, tudo num desperto modo jornalístico que, no entanto, nas suas fontes e pesquisas, raramente contempla aspectos inéditos, contraditórios ou polémicos. Em noventa páginas de ritmada escrita, estamos, assim, perante uma compilação biográfica inteligente que, mesmo para todos os que já conhecem a história, mostra-se de eficácia instantânea e saborosa.
Uma notável fotografia, por nós desconhecida, ilustra um artigo evocativo dos cinquenta anos do 25 de Abril da edição digital do suplemento Babelia do jornal espanhol El País. Foi obtida pelo francês Gilles Peress da agência americana Magnum Photos e, apesar de não termos conseguido ler a peça na sua totalidade, só a imagem serve para nos encher a alma apoquentada - nela, sem data assumida mas que deverá referir-se à comemoração de 1º de Maio de 1974 em plena Lisboa e tendo como fundo um prédio alto de colchas nas varandas (Avenida Estados Unidos da América?), um grupo de pessoas de cravo ao peito e, na sua maioria, sorridentes, tem no seu centro uma jovem rapariga que eleva com vigor um V feito de cravos vermelhos. A sua expressão, de olhar fixo de alguma tristeza e o luto das suas vestes talvez significassem, na altura, uma homenagem a algum irmão ou primo a quem a guerra colonial, sem sentido, tirou a vida e a que a revolução, finalmente, poria então fim.
Essa injustiça e crueldade há muito que tinham sido denunciadas em forma de canção - "Menina dos Olhos Tristes", que José Afonso escreveu no Algarve um ou dois anos depois da Guerra Colonial ter começado (1961), só seria editada em forma de single em 1969. A sua viagem e estadia para Moçambique em 1964 talvez tenha adiado a gravação, o que foi aproveitado por Adriano Correia de Oliveira para a lançar nesse mesmo ano. A canção foi de imediato proibida e conheceu posteriores versões de Luís Cília e Manuel Freire que podemos ouvir a contar a história no recente destacável digital que o jornal Público dedicou a algumas "canções que ajudaram Abril".
É este o sete polegadas de José Afonso de que mais gostamos, talvez por ter sido o primeiro que ouvimos e que conhecemos, desde sempre, guardado no móvel do gira-discos cá de casa. Capa de imagem robusta com José Afonso soturno e pensativo numa fotografia do grande Fernando Aroso tirada, talvez, na mesma sessão das que fizeram capa das primeiras edições dos álbuns "Cantares do Andarilho" (1968) e "Contos Velhos, Rumos Novos" (1969), o tal onde Afonso, sentado à mesa de casa, tem a seu colo a filha Joana.
Este disco não contempla "Menina dos Olhos Tristes" nem o lado B, o tradicional português "Canta Camarada" de chama bem mais festiva e apelativa. Os dois haveriam de emparelhar com outros dois originais, esses sim, incluídos em "Contos Velhos, Rumos Novos" ("Deus te Salve, Rosa" e "Lá vai Jeremias"), num EP posterior datado de 1970 e onde José Afonso aparece na capa numa fotografia ao ar livre tirada em Victoria Park, Londres, durante o "Festival of Life".
A canção é, sem disfarces, uma bomba anti-guerra. Bastam os primeiros versos da autoria Reinaldo Ferreira (Barcelona, 1922 — Lourenço Marques, 1959) para se perceber a intenção interventiva e acusatória, embora não se saiba como é que José Afonso teve conhecimento do poema, se através de um jornal ou do original manuscrito. Com rapidez, a censura impediu a sua emissão radiofónica mas a chegada da chamada "Primavera Marcelista" (1968-1970), uma pequena e aparente abertura reformista, permitiu o seu lançamento comercial e a sua efectiva disseminação e efeito. Percebe-se porquê.
O brilho da viola de Rui Pato, o único instrumento utilizado, ganha neste tema uma dimensão monumental que a voz clara de José Afonso, em plena potência, acentua num dramatismo activo e metafórico sobre um problema inexplicável e que haveria de ferir de morte o regime já em decadência. A tal madrugada esperada de um dia inicial inteiro e limpo haveria de o fazer tombar. Afinal, talvez os olhos da menina da fotografia não estivessem só tristes mas também cheios de esperança num futuro... livre.
Santiago de Compostela; aCentral Folque/Tradisom, 2023
As biografias desenhadas são, como notado, uma tendência que se avoluma em qualidade e diversidade. No caso de músicos portugueses, a que se dedicou a José Afonso é, sem dúvida, bastante pertinente e actual, o que resulta numa edição cartonada de verdadeira novidade e algum risco inerente a toda e qualquer ficção.
Estamos, assim, perante uma narração visual da vida de Afonso a que se acrescentam suposições e situações imaginadas por Teresa Moure, professora de Linguística na Universidade de Santiago Compostela que se habituou a publicar romances, poesia ou teatro e que tem, como muitos galegos, uma ternura e admiração pela obra do músico português. Fê-lo já sabendo que os diálogos e as sentenças se destinavam a ser ilustrados por Maria João Worm, artista lisboeta com ligação sentimental à Galiza e onde já obteve vários prémios. A distinção está marcada desde o início do álbum e é, até ao fim, uma notável surpresa para o olhar em jeito de vário cenários como cinematografados por um desenho apurado e incisivo.
O jogo ou teatro de sombras aplicado tem no preto e branco do episódio primeiro, que romanceia a partida de barco para Moçambique e o abandono a que esteve sujeito, uma marca de estética quase desfocada e sombria que, de propósito, como que nos afasta e dilui de uma memória distante. O colorido quente que, logo de seguida, percorre a infância africana do cantor, estimula o leitor a uma contrastante felicidade que tanta influência teve em muitas das canções e ritmos de que Afonso nunca se separou e sempre se orgulhou.
A narrativa, apesar de cronológica, vagueia depois de África noutras latitudes mas com centro na Galiza, Espanha, e nos concertos e amizades que por lá foi fazendo e onde se convergem ficções cruzadas no feminino, com referências às filhas do cantor ou aos difíceis casamentos em desabafos inventados mas que não deixam de reportar a importância da figura da mulher tantas vezes expressa pelo canto (p. ex. "Teresa Torga" ou "As Sete Mulheres do Minho") de forma sensível e atordoada.
O enredo, de nítida inspiração documental e consulta prévia, não esquece o José Afonso lutador e resistente à censura, resiliente na prisão mas libertador e inspirador com "Grândola, Vila Morena", hino que na Galiza foi e é motivador de acções e causas políticas. Nas conversas imaginadas com amigas jornalistas (Begónia Moa) emerge uma intimidade ternurenta que a sofreguidão dos dias foi apagando e que a autora da história faz valer como de importância legítima para a percepção de uma vida venerada, mas por vezes esquecida, de uma vida intensa, mas onde se esconderam tantas dificuldades, de uma vida desprendida, mas de fama involuntária.
É essa melancolia que arrastou até à morte, é essa virtude de modéstia que este livro, assumidamente falso ("Balada do Desterro" e não "Canção do Desterro"), consegue elevar, pelo desenho, no respeito e reverência a uma figura maior da vida portuguesa e, já agora, da vida galega. Esse país (não) chamado Portugalícia tem neste trabalho visual um exemplo perfeito de uma irmandade sócio-cultural inevitável e de que José Afonso, mesmo desiludido, haveria de ser o principal entusiasta. Um terra grande da fraternidade... é sempre em frente!
Neste dia e hora, há cinquenta anos, já certamente o capitão Salgueiro Maia teria algumas indicações secretas quanto à marcha sobre Lisboa que realizaria na madrugada de 25 de Abril a partir de Santarém. Verdadeiro herói da revolução só muito tardiamente reconhecido, tem agora uma canção em sua homenagem por uns misteriosos Euriborges mas que se adivinham ser um grupo de amigos nortenhos reunidos num estúdio apetrechado...
O tema "Canção do Salgueiro" têm música e letra de Carlos Tê que também assegura a produção ao lado de Mário Barreiros e Pedro Vidal. Barreiros é responsável pela mistura e masterização, pela bateria, guitarra eléctrica e teclados, cabendo a Pedro Vidal, director musical de Jorge Palma e parceiro dos Blind Zero e Wraygunn, outra guitarra acústica e eléctrica e também o banjo. Na canção participam ainda Rui David na voz, Patrícia Lestre na voz e violino, Paulo Gravato, saxofonista de Pedro Abrunhosa ou os Azeitonas e Rui Pedro Silva no trompete. A voz principal é de Carlos Monteiro. Viva o Salgueiro!
O facto de Gilberto Gil e Caetano Veloso serem compadres, ou seja, terem casado algures com as irmãs Sandra e Dedé Gadelha, é só uma primeira coincidência de um emaranhado de linhagens que aproximou a família Gil à família Veloso. Se quiserem aprofundar o rocambolesco da história estejam à vontade, sendo certo que Bem, filho de Gil e Moreno, filho de Veloso, se tornaram primos e, embora de gerações diferentes, bons amigos.
A amizade tem na música, nas canções, nos estúdios e nos discos uma contínua forma de vida e de entreajuda que multiplicou, desde sempre, contactos, parcerias, colaborações com mais músicos transformados, em muitos casos, noutros amigos. Esse espírito de partilha, que Moreno há muito praticou com Kassim ou Lancelotti no projecto +2 de boa memória, é caminho andado e experimentado para apostar numa digressão iniciada no Brasil em 2019 e que agora chegou a Portugal e a outros países europeus.
Uma guitarra eléctrica e uma guitarra acústica foram os instrumentos principais que suportaram a maioria das canções. Ao centro, uma bicicleta ocupou o palco como símbolo do gosto de Moreno por este meio de transporte mas acabou por não ser utilizada (bem que era tentador). O desfile dos temas mereceu sempre contexto e explicação quanto aos tais amigos que pediram ajuda ou que ajudaram, tudo de forma informal, sincera e até humorística quanto a figurões como Marcos Valle, Domenico Lancelotti, Preta Gil, Jorge Mautner ou Adriana Calcanhotto mas também em homenagem aos pais cantores para o que contaram com a voz de Mãeana, esposa de Bem e também ela compositora, em "Sete Mil Vezes" e "Queremos Saber".
Tudo junto, tudo misturado, o serão foi assim um mergulho bem-disposto e descontraído no caldeirão de ritmos em que a música brasileira fervilha, do samba à MPB, da marchinha à bossa-nova, variedade que estará, certamente, patente nos discos que ambos lançarão em breve de forma separada mas conivente. Notou-se, contudo, que o acerto de voz de Bem está ainda por calibrar mas que o de Moreno, muito mais experiente e timbrado, assentou perfeito em canções como "Um Passo à Frente" ou "Deusa do Amor", pérolas cantadas em coro e já em festa que aquele prato e faca usados à maneira, isto é, de forma gingona como só os baianos sabem fazer, multiplicou no balanço. Provado ficou, pois, que a música do Brasil será sempre um mundo maravilhoso e... bem moreno!
A nova colaboração entre os Soundwalk Collective e Patti Smith terá edição a 2 de Maio pela Bella Union. Trata-se de "Correspondences Vol. 1", um EP de dois temas resultantes de uma exploração comandada por Stephan Crasneanscki, mentor e recolector de sonoridades de paisagens, histórias, filmes ou vestígios que, todas juntos, permitem uma relação inovadora com a imagem.
Trata-se da segunda parceria entre o projecto nova-iorquino e Smith, seguindo-se a "Peradam" editado em 2020 e onde colaboraram também Anoushka Shankar ou Charlotte Gainsbourg.
Os dois novos temas, ambos apresentados na brilhante perfomance minhota de Março passado, são "Medea" e "Pasolini", este agora oficialmente audível.
O trio norueguês Elephant9 é um fenómeno tão brutal que merece que aqui se fixem os nomes dos seus três resistentes e lutadores: o (mais que) teclista Stale Storløkken, o baixista Nikolai Hængsle e o baterista Torstein Lofthus. São eles os autores e fazedores de dez álbuns de jazz rock + prog rock + psico + acid rock + "eu sei lá" que tem agora o novo vaivém "Mythical River" em aterragem vindo de uma já antiga órbita circular que se acentua, como convêm, em trajectória progressiva.
Claro que haverá sempre quem os acuse de copiar o que há cinquenta anos se fazia analogicamente e de forma inédita, mas um desiderato instrumental deste calibre acabará sempre por ser imune a comentários e questiúnculas ridículas pois o que se dá a ouvir, feito à moda antiga, poderá não ser para todos mas todos o deveriam ouvir.
Tal como no anterior e também aconselhável trabalho "Arrival Of The Elders", o carisma e a exploração sonora brotam outra vez em seis peças de cosmometria e hipnotismo remarcáveis que induzem o ouvinte num futurismo inigualável e viciante. Prog top e de capa, como sempre, geométrica!
É uma das nossas perdições antigas que, infelizmente, ainda não presenciamos ao vivo. A lacuna tem os dias contados até Julho, mês em que Lianne La Havas marcou duas datas em Lisboa e Porto (16 de Julho, Hard Club) para espalhar encantamento e muito charme. Já há bilhetes.
Para Arooj Aftab imaginar um digno sucessor do monumental álbum "Vulture Prince" de 2021 não se afigura tarefa facilitada. Certo é que ele já tem nome ("Night Reign"), data (31 de Maio), selo (Verve Records) e anúncio ("Raat Ki Rani"), o primeiro single que conta com video a cargo da actriz, e também cantora, Tessa Thompson.
No regresso aos originais não faltam diversas ajudas amigas como a da guitarra de Kaki King e do piano de Vijay Iyer, parceiro no álbum "Love in Exile", ao lado de Shahzad Ismaily, editado o ano passado. Mantêm-se a magia do canto em urdu, língua paquistanesa e indiana de maravilhoso hipnotismo, mas há desta vez três peças em inglês. O perfume, esse, continua intenso, aceitando-se encomendas, mais uma vez, exclusivas e prateadas a partir de hoje.
Faltava a Andrew Bird um experiência jazz, isto é, uma investida cooperativa em alguns standards ao lado do baterista Ted Poor e do baixista Alan Hampton. O trio reuniu-se na Califórnia, mais concretamente no Valentine Recording Studio, para ensaiar e registar temas de Chet Baker ("I Fell In Love To Easily"), Duke Ellington ("Caravan"), Rex Harrison ("I've Grown Accustomed To Her Face", tema popularizado por Nat King Cole), Cole Porter ("You’d Be So Nice to Come Home To") e outros de inspiração nostálgica retirados do chamado "Great American Songbook".
O resultado final é "Sunday Morning Put-On" que sai a 24 de Maio pela Lomo Vista Rcordings, no qual o saxofone é substituído pelo violino e a voz tão característica de Bird. O disco tem ainda contribuições de Jeff Parker na guitarra e Larry Goldings no piano e encerra com "Ballon de peut-être", o único original entre as dez versões. Está a partir de hoje, Record Store Day, em pré-encomenda exclusiva em vinil translúcido avermelhado.
Da imensidão de edições exclusivas prevista para o próximo sábado, dia das chamadas lojas de discos, retiramos da lista uma simples mão cheia de sete polegadas interessantes. O RSD - Record Store Day é, pois, cada vez mais uma (des)ilusão abusiva e... cara!
O nome Jake Xerxes Fussell pode até ser nada fácil de pronunciar mas o norte-americano é mesmo um caso de imediato reconhecimento sempre que uma das suas canções se dá a ouvir. A onda folk e blues que aplica à maioria delas tem acento numa tradição Southern que ganhou, no nosso caso, expressão de vício com "Good and Green Again", um dos melhores discos de 2022. Temos a sensação que outra maravilha se aproxima sem contemplações...
A certeza têm como fonte confirmada o tema "Going to Georgia", um tradicional americano que Fussell aprendeu em várias versões e variações e que decidiu registar à sua maneira para o álbum de regresso "When I'm Called" agendado para Julho e que marcará a estreia na Fat Possum Records. Coincidência, o músico guitarrista nasceu em Columbus, Georgia, em 1981, residindo agora em Durham, Carolina do Norte.
No novo trabalho reúnem-se uma série de colaborações amigas como, entre outras, a de Blake Mills que toca guitarra em "Going to Georgia" e ainda em outros dois temas ("Cuckoo" e "Gone to Hilo") e a de Joan Shelley que empresta a voz no referido "Cuckoo". O acento é mesmo uma revisitação à música tradicional com produção de James Elkington, o mesmo do anterior "Good and Green Again", numa jornada que promete, por si só, uma admirável reinvenção, embebida desde jovem, da música tradicional americana.
Os Belle & Sebastian estão a falhar - ainda não há notícias de um novo álbum em 2024, o que fecharia o triângulo começado em 2022 com "A Bit of Previous" e que foi logo continuado com "Late Devellopers" em 2023. Mas já há sinais.
Saiu hoje o novo single "What Happened To You, Son?" como presente cortês pelo início da digressão pela América do Norte que terá início para a semana e se alongará até ao final de Maio, tournée que só agora se concretizará depois do adiamento motivado por doença do vocalista Stuart Murdoch. Por lá e na abertura dos vinte e um concertos previstos, terão a companhia recomendada de The Weather Station e Haley Heynderickx.
A nova canção conta a história de um fã obsessivo dos seus ídolos musicais, uma inspiração biográfica na juventude de Stuart Murdoch situada em muitas bandas dos anos 80, mania que o próprio admite agora não ter sido nada salutar, atendendo a que muitos delas acabaram por mudar no estilo e na atitude inicial de humildade.
Atendendo a que Murdoch publicará em Setembro a sua estreia em forma de romance com o título de "Nobody's Empre" através da editora Faber, talvez aí se encontrem razões mais que suficientes para a composição de outros inéditos. O enredo do livro, em formato de memória e ficção, vagueia entre Glasgow e a Califórnia e situa-se nos primeiros anos dos anos 90, onde o personagem principal se tenta reinventar depois de uma hospitalização motivada pelo síndroma de fadiga crónica.
Murdoch confessou, a este propósito, que anda há anos a cantar sobre o assunto, já que enquanto frequentava a universidade contraiu precisamente esta doença
medicamente designada por encefalomielite miálgica. Também o filme "God Help the Girl", que realizou em 2014 inspirado pelo álbum/banda com o mesmo nome (2009), faz uma abordagem ao mesmo tema, em que a protagonista Eve é vítima da doença que a mantém no hospital, começando, então, a compor canções como passatempo e a sonhar com a formação de uma banda...
O desenho de capas para discos é um assunto sério. Em Portugal, esta atenção implícita à concepção de um todo imagem-música, que há muito se entende como sinérgico, foi desprezada na importância e demorou a ser assumida como essência de um negócio. Mereceria, por isso, maior pesquisa científica que um atento design de comunicação académico deveria incentivar e que tem conhecido, ainda assim, algumas tentativas esparsas e ténues mas bem meritórias. Este livro de Abel Rosa é, por isso, um bom exemplo de como o tal assunto se pode revelar despertador na raridade, motivador na novidade e especialmente oportuno e seminal no caso escolhido.
Entre o "capista" José Santa-Bárbara e o músico José Afonso existiu uma cumplicidade política que a amizade transformou numa relação artística duradoira. Ambos tiveram problemas sérios com a PIDE, processos que no caso do "capista" o autor Abel Rosa consultou na Torre do Tombo como forma de provar que a luta contra a ditadura abraçou, de forma solidária, esta parceria numa demanda imaginativa e irreverente - a concepção de nove capas para álbuns de José Afonso datadas entre 1971 e 1983.
A inspiração, quando questionada pelo "capista" junto do cantor, obteve sempre a mesma resposta: "Lê os poemas!". Foi o que Santa-Bárbara fez de todas as vezes, o que não dispensou, também, a leitura dos textos escritos por Urbano José Rodrigues ou por Bernardo Santareno para contextualizar as canções. De todas as vezes foi a partir deles que as imagens e arranjos escolhidos acabaram aprovados pelo amigo Zeca na sua acepção metafórica e figurada quanto aos tempos que se viviam ou que se adivinhavam invertidos na utopia.
Uma pomba da paz, uma toupeira, um comboio fumarento rumo ao futuro, umas mãos que trabalham, umas fotografias do amigo tipo passe ou um planador/voador em queda, são alguns dos motivos, adereços, bonecos, ilustrações que depois de trabalhadas se estendem em maquetas, colagens ou sobreposições de um mestre intuitivo na percepção principal da mensagem que a capa do disco assumiria como imagem primeira. Constatar e descobrir as suas fontes bibliográficas em dicionários, revistas ou outras publicações, revelam a perspicácia metódica que Santa-Bárbara manteve desperta e viva, recurso de aparente lógica e conselho mas que só uma imaginação fértil aprimorou a partir dos desafios sugeridos e das oportunidades criadas.
Antes e depois da censura, antes e depois da liberdade, as revelações que por aqui se dão a conhecer confirmam que José Afonso estava bem ciente desse impacto junto dos compradores ouvintes, nada mais nada menos, que os destinatários de um esforço artístico por vezes exaustivo mas de ferrenha militância. Ao seu lado, Santa Bárbara, o tal "capista de Zeca" numa expressão do jornalista e poeta Fernando Assis Pacheco de 1972, não foi mais que o companheiro certo e completo para realizar e concretizar, mais que uma história bonita, um notável e icónico capítulo da história do design português ainda e sempre inspirador.
Ver, também no livro, a terminar, a forma educada e eficaz como João Morais (o também músico O Gajo) criou capas recentes para uma série de singles-digitais de José Afonso a partir de todas estas capas de Santa-Bárbara, só confirma o que de mais simples e constante elas representam no fascínio - verdadeiras obras de arte, vejam bem!
No dia 15 de Março surgiu misteriosamente uma nova composição de Keaton Henson chamada "Tokyo Laundry". A data escolhida coincidiu com o World Sleep Day 2024, uma celebração que pretende chamar a atenção para a importância do sono e do descanso da mente e do corpo, sendo a faixa, afinal, parte de "Somnambulant Cycles", um disco instrumental que explora o subconsciente humano e que foi escrito para criar uma "sensação de calma fisiologicamente fértil, a calma de onde vêm as ideias, onde as emoções são sentidas mas passam como os peões".
Junta-se agora uma outra peça imersiva - "Try" recebeu a contribuição do norueguês Daniel Herskedal, um jovem tocador de tuba jazzística que se junta no álbum a outros especialistas na arte de entender o som e a sua vulnerabilidade. O tema tem video registado durante uma madrugada na costa da Inglaterra através de um autocarro vazio que percorre paisagens áridas e surreais enquanto o mundo ainda dorme. A intenção é, outra vez, permitir ao espectador ter um momento de quietude e paz. Bem que precisamos!
Sobre o regresso de Kamasi Washington aos longa-duração pairava uma certeza - seria em grande! O tema "The Garden Path" que o anunciava há já mais de dois anos, um acto de resistência e luz em plena pandemia e onda negacionista, não deixava dúvidas quanto ao fulgor e desiderato de um expoente moderno do jazz e para o qual, se sabe agora, se rodeou de múltiplas ajudas e conexões como Thundercat, George Clinton, Terrace Martin, Patrice Quinn ou André 3000.
Em "Fearlees Moment", assim se chama o disco a publicar no inicio de Maio, transborda um apelo à dança como expressão espiritual e onde o movimento do corpo é simplesmente uma reacção diferenciada pelo ritmo. Podemos testá-lo em duas das novas peças: de forma lenta em "Dream State", tema onde confessa a total improvisação e flutuação dos instrumentos como a flauta de Andre 3000 e que tem video da autoria da irmã Aubrinae Washington e participação da dançarina e modelo Zenmarah; de forma agitada em "Prologue", uma pedra arrebatadora de oito minutos que encerra o álbum e que eleva a dança a um frenético alvoroço libertador. Um ritual, por isso, que queremos muito repetir na dose...
A estreia a solo de Beth Gibbons, a incontornável voz dos saudosos Portished, está marcada para 17 de Maio, dia da edição de "Lives Outgrown" pela Domino Records inglesa. A produção das dez novas canções, em parceria, junta James Ford a Lee Harris dos Talk Talk e concretiza uma composição que amadureceu ao longo de dez anos sobre muitas despedidas e desenlaces, multiplicando meditações à volta da ansiedade, da maternidade e da inevitável mortalidade. Um envelhecimento natural mas, mesmo assim, triste que demorou a ultrapassar.
Distante da folk e jazz do disco de há vinte anos e dois anos "Out Of Season" ao lado Paul Webb aka Rustin Man, outro Talk Talk, o caminho aponta agora um notório experimentalismo e arrojo que se distinguem nos dois primeiros temas conhecidos. Os respectivos videos refelectem uma largueza e interactividade visual a que não é estranha a colaboração com Weirdcore, parceiro de Aphex Twin, para "Reching Out" e Tony Oursler, artista multimédia responsável pelas imagens de "Floating a Moment", o primeiro single saído em Fevereiro, e autor do video para "Where Are We Now?" de David Bowie em 2013.
O resultado de tudo isto merece óbvia atenção e redobrada audição, o que aumenta a expectativa quanto ao álbum de uma artista agora motivada e determinada na bravura de uma meia-idade. Gibbons tem presença confirmada no Primavera Sound Barcelona (30 de Maio) e, atendendo à legião, lá está, de meia-idade que por cá que a venera, não deverá tardar a confirmação de oportunidades ao vivo para o esperado reencontro.
Não foram já poucas as vezes que por aqui destacamos o génio do canadiano Chilly Gonzales em facetas, ora inesperadas ora satíricas, que já disseram respeito a rap orquestral, livros sobre Enya, fofuras de Natal ou discos em francês! Uma verdadeira caderneta que o cromo principal vai preenchendo ao sabor de um talento e irreverência de indiscutível pertinência. Chega (cruzes!) agora mais um avanço, embora desta vez a causa seja bastante polémica e arriscada.
É conhecido o antisemitismo do alemão Richard Wagner (Leipzig, 1813/Veneza, 1883), compositor que foi eleito pelo nazismo como um exemplo de superioridade da música e do intelecto alemão. A viúva do seu filho Siegfried, Winifred Wagner, era assumidamente nazi e foi amiga de Adolf Hitler, pagando com a prisão, no pós-guerra, a posição adoptada. Ainda hoje este é um assunto de extremos recorrentes que motiva pesquisa, polémica e actualizações...
Gonzales, contudo, não faz a coisa por menos - publicou um novo single chamado "F*** Wagner", um retorno a um género de rap de intervenção onde não faltam alusões e acusações. Na letra explícita pode ouvir-se, por exemplo:
"F*** Richard Wagner/What a motherfucking monster
(...)
F*** his fab club and his converts/They're not welcome at my concerts/
Harder, faster, better, stronger/Kanye West is the brand new Wagner
(...)
So can the artist and the art ever be separated?/ It’s hard to boycott something that you love/ But it’s easy if you hate it
(...)
Like if I never hear Richard Wagner again/ I know I wouldn’t miss him/ But I still bang that R. Kelly remix to "Ignition""
Recorda-se que o rapper americano R. Kelly está a cumprir uma pena de prisão por pornografia infantil, extorsão e, suposto, tráfico sexual.
Não contente e desafiador, Gonzales lançou em simultâneo uma petição para substituir o nome de Richard Wagner por Tina Turner de uma praça de Colónia, Alemanha, acompanhada por uma carta dirigida ao presidente da Câmara local. Turner habitou em Colónia durante nove anos, acabando por falecer na Suiça em Maio do ano passado. Gonzales foi (é?) também habitante da cidade.
A intenção e a canção foram já formalmente apresentadas no programa Magazin Royale do canal alemão ZDF. Para ler e reflectir, sem ironias, aqui.
A polémica e embirração, no caso de Gonzalez, são já antigas como se pode comprovar por este video de 2015 aquando da sua presença no mesmo programa televisivo, não sendo inocente o retorno ao assunto num momento em que na Europa os movimentos nazis se agigantam perigosamente.
O trio maravilha Bonny Light Horseman pode até ter mudado de editora mas não mudou de estilo, por sinal, um bom estilo de qualidade como o provam os primeiros dois temas já conhecidos de um terceiro disco de originais. Chama-se "Keep Me On Your Mind/See You Free", um duplo álbum de vinte canções que marca a estreia na Jagjaguwar no início do próximo mês de Junho e que promete constituir-se como uma ode moderna ao mundo de incertezas e convulsões em que vivemos e viveremos.
O trabalho de composição e gravação decorreu em cinco meses de 2023 tendo como centro de partida a pequena povoação irlandesa de Ballydehob em Cork e, principalmente, o centenário pub Levis Corne House onde
Anaïs Mitchell, Eric D. Johnson e Josh Kaufman se instalaram com outros colaboradores (o baterista JT Bates, o baixista Cameron Ralston e o engenheiro de som Bella Blasko) para, em ambiente quase familiar, criarem a base principal do projecto.
O espaço, apesar de pequeno, foi fundamental para encorpar um espírito fraterno e autêntico que se pode verificar no video de "When I Was Younger" (vide abaixo), tudo sob olhar fixo de um quadro pendurado numa das paredes que acabou por ser escolhido para a imagem de capa trabalhada pelo artista Tom Campbell. Sem o saberem, o nome que a esposa do dono do pub tinha dado aquela mulher era... Bonnie!
O álbum teve, depois, aprumo no Dreamland Recording Studios de Nova Iorque, local onde a banda também finalizou os dois trabalhos anteriores e onde Annie Nero se apresentou para acrescentar vozes e retoques de contrabaixo a algumas das canções de um disco grande e, certamente, um grande disco!
Vários autores. Porto; Memória/Arca das Letras, 2006
Em mês comemorativo dos cinquenta anos da Revolução de Abril, tentaremos em quatro semanas falar sobre ela através de uma das suas figuras mais evidentes e descomprometidas - José Afonso! Têm sido muitos os livros saídos sobre o músico de Aveiro mas não pretendemos ser exaustivos e apressados ao seu acesso e leitura, até porque há uma infindável colecção que ficou para trás na análise e injusto esquecimento apesar de, por aqui, já termos trazido publicações a ele alusivas. Nunca serão, no entanto, demais.
É o caso desta recolha de histórias e tributos já de 2006, pequeno volume que pretendia antecipar os vinte anos sobre a sua morte, convidando um pouco mais de vinte pessoas a dar o seu testemunho referente ao músico, ao cantor ou, simplesmente, ao amigo. Alguns nunca sequer lhe falaram, outros viajaram e conviveram com ele, muitos partilharam palcos e estúdios, poucos ou nenhuns acederam à sua intimidade. Destacam-se, mesmo assim, os textos ou poemas de Manuel Alegre, Francisco Fanhais, José Mário Branco ou Pedro Barroso e dos jornalistas nortenhos Francisco Duarte Mangas, César Príncipe, Jorge Ribeiro ou José Viale Moutinho. São destes dois últimos duas das mais sumarentas histórias que o livro aporta e que valem a pena recontar pela curiosidade e significado mas que não disfarçam, no conjunto, um notório desnível de interesse e novidade de uma edição, ainda assim, meritória.
Dois meses depois da sua morte, em 24 de Maio de 1987, a Galiza promoveu uma homenagem a José Afonso. O repórter Jorge Ribeiro, ao serviço de um diário da Invicta, insistiu na deslocação a Vigo, tentou que agenda do jornal não o esquecesse mas acabou, por iniciativa e viatura própria e sem repórter fotográfico, a viajar nesse sábado até lá sem certeza do tamanho do espaço disponível para o artigo ou sequer que ele seria publicado. O que viu e ouviu foi relatado somente quatro dias depois como "um exclusivo" da publicação, aqui reproduzido na totalidade, já que mais nenhum orgão de comunicação social luso esteve representado! A "coisa", afinal, foi em grande (transmissão televisiva, radiofónica, conferências, espectáculos de rua, etc.), sentida e participada e uma confirmação clara da importância e afecto que a região espanhola sempre dedicou a José Afonso, carinho que já devia ter merecido a edição de um ou mais bons livros de memórias e contextos e até a realização de documentários televisivos ou cinematográficos que recuperassem imagens, sons e demais inéditos sobre uma ligação "familiar" de raízes bem mais antigas - Galiza Homenageou Zeca "Como se fora seu filho" foi o título do artigo!
Dez anos antes, José Afonso participou no VII Festival Internacional da Canção Popular do Rio de Janeiro depois de ter recolhido quinze mil votos de leitores do "Diário de Lisboa"! Na comitiva portuguesa viajou o jornalista José Viale Moutinho que conta as peripécias de uma participação condicionada, "inclinada", onde se referem outros figurões como Moustaki, Demis Roussos ou Gilberto Gil. Coutinho conta como a DOPS (a PIDE brasileira da altura, já que o país ainda viveria em ditadura até 1985) se infiltrou no "controlo" e de como, numa mesa de piscina do Copacabana Palace, deu de caras com José Afonso em amena cavaqueira com um tal coronel Chadek da referida polícia, agente que se tinha apresentado de véspera ao jornalista mas que o músico desconhecia, naturalmente, por completo! Imaginar esta cena "tropical" é quase comédia negra a que se poderá acrescentar o que terá sido a apresentação efectiva da canção "A Morte Saiu à Rua" somente acompanhada por dois violões e uma leve percussão num Maracanãzinho cheio e propositadamente "barulhento" depois de muitos ensaios infernais e agitados num quarto de hotel... A transmissão televisiva desta participação foi realizada em directo e que bom seria ver essas imagens históricas. Onde é que elas estarão escondidas/esquecidas?
O livro abre com a mais sentida das homenagens - o brasileiro Alípio de Freitas (1929-2017) era um preso político na Fortaleza de Santa Cruz de Niterói aquando do 25 de Abril, caso que em Portugal motivou forte empenho na tentativa de libertação. O próprio tinha enviado clandestinamente uma carta para o nosso país, relatando a sua condição mas também o seu empenho na luta anti-fascista, o que chegou ao conhecimento de José Afonso. Aquando de uma visita oficial do Cônsul do Rio de Janeiro à prisão foi-lhe entregue uma cassete que só pôs a tocar quando regressou à cela e, pela primeira vez, ouviu a voz do cantor e uma das canções com o seu nome - "Alípio Dias" (tema que encerra o disco "Com as Minhas Tamanquinhas" de 1976). Como recorda o próprio Alípio, as canções ecoaram, então, bem alto para que os restantes presos também as pudessem ouvir também pela primeira vez, momento que para José Afonso se afiguraria, certamente, reconfortante!
Dá-se nota, no final da publicação, da intenção de organizar um volume de cinquenta testemunhos em prosa ou verso dos próprio leitores, depois de uma prévia seleccão por um júri, o que estava agendado para Fevereiro de 2007. Do interessante projecto não se conhecem quaisquer desenvolvimentos, o que é uma pena e... penoso.
de Neo Sora. Japão; Film Constellation/Midas Film, 2023
UCI Cinemas, Arrábida Shopping, 2 de Abril de 2024
O que fazem vinte cinco pessoas adultas numa chuvosa tarde de terça-feira numa sala grande de cinema? Diríamos que, na maioria das vezes, tentam passar um bocado de tempo da melhor maneira, seja pela curiosidade em relação ao que vão ver, seja na expectativa da confirmação de uma boa ou, até, má crítica sobre o filme escolhido. No caso, contudo, percebeu-se que todos lá estávamos por uma única razão - prestar homenagem a uma das maiores figuras da música dos últimos cinquenta anos pela simples audição das suas composições. Pode parecer redutor, soar pretensioso, mas terminada a sessão onde ninguém desistiu, comprou pipocas ou falou ao telemóvel, respiramos fundo e acabamos com um leve sorriso de satisfação que o maestro Ryuichi Sakamoto, certamente, replicaria com uma vénia. Mas como é que se consegue tamanho monumento?
As vinte peças escolhidas em jeito de panorâmica da sua obra/opus de cinco décadas, executadas e curadas pelo próprio numa última perfomance ao piano, funcionam como uma narrativa magnífica que não precisa de legendas, títulos ou referências. Sucedem-se numa atmosfera de intimidade que, num grande ecrã, nos enchem de uma atenção imediata pelo preto e branco dorido mas sublime das imagens, percorrendo o grande piano, as mãos de dedos finos sobre as teclas ou as feições de um rosto expressivo e cansado. Por vezes, há um candeeiro que se acende, forte, para o iluminar permitindo perceber a fixação dos microfones, o fundo do estúdio ou o leve cima-para-baixo das cordas, tudo sem nunca nos causar qualquer distracção quanto à magnificência das composições e da sua simultânea doçura e desassossego.
O propósito sugere uma simplicidade que, numa consulta à ficha técnica, é atropelada pela imensidão de meios e técnicos envolvidos. Sente-se, pois, esse perfeccionismo tão japonês na escolha dos ângulos, dos pormenores e de uma acentuada estética fotográfica que foi assumida por Bill Kirstein, nova-iorquino experiente na aproximação e fixação de expressões e movimentos e que aqui teve uma prova de fogo irrepetível e única - este foi mesmo o último, dito, concerto mas que o próprio assumiu como impossível de executar num único fôlego. Sem forças suficientes para uma hora ou uma hora e meia seguida ao piano, foi então necessário registar tema a tema e, apesar de transmitido para muitos países do mundo no final de 2022 como um evento em streaming pago a partir do estúdio 509 da emissora nipónica NHK em Shibuya (Tóquio), a perfomance foi previamente montada e supervisionada pelo autor de forma a sugerir um concerto convencional.
O filme daí resultante, estreado em Veneza em Setembro passado, é assim, mais que uma apurada celebração de vida, uma dádiva sentida e destinada a vincar um testamento eterno quanto ao fulgor e nobreza de uma música intemporal e, necessariamente, sonhadora. Ao ouvir, quase no final, o inebriante
"Merry Christmas Mr. Lawrence" na sua dimensão esplendorosa que todos já sentimos sempre que ele repercute, tornou-se memorável e mesmo excepcional juntar-lhe a dimensão tocante da imagem que só um grande ecrã de cinema permite alcançar e que, em boa hora, obteve distribuição comercial. Haveria, por isso, que ficar sentado mesmo, mesmo até ao fim...
Já depois da ficha técnica e do alinhamento das peças, um aforismo popularizado por Séneca fixou-se ao de leve na tela - Ars longa Vita brevis.
Para Laetitia Sadier a música corre nas veias. Irrequieta, activa, arrojada ao lado dos seus queridos Stereolab, que nos visitaram em 2022, misturando-se com os brasileiros Mombojó no projecto Modern Cosmology, que deu frutos num dos melhores discos de 2023 ou em nome próprio como no último "Rooting For Love", disco que a Drag City soltou em Fevereiro e o primeiro a solo desde a reunião dos Stereolab em 2019.
Em tudo isto há sempre novidade, frescura, bom gosto e um nítido toque de classe que faz da complexidade das canções e das harmonias um som retro-futurista sedutor.
Serviu-se, desta vez, do grupo The Choir para promover em francês ou inglês, como sempre, uma dinâmica consistente onde o orgão, a guitarra, o baixo, o sintetizador, o trombone e o vibrafone fazem dos temas uma intrincada e, ao mesmo tempo, leve dose de avant-pop sem idade apesar de algum pessimismo e prevenção expressos pela letras.
Temas, por isso, que se adivinham vibrantes em formato concerto para o que se rodeia do colectivo The Source Ensemble com quem registou "Find Me Finding You", disco de 2017 que formalizou uma colaboração extensível nos anos. A próxima digressão pela Europa durante o mês de Maio têm oito espectáculos (!) pelo país vizinho mas terá o seu término em Portugal com datas na ZBD (1 de Junho) e no GNRation bracarense (dia 2 de Junho, Domingo, 18h00). Já há bilhetes para ver a rainha e a respectiva corte...
Um novo trabalho da harpista galesa Amanda Whiting, saído no final de Março e que marca a estreia na editora First Word Records, recebeu o título de "The Liminality of Her". Algumas das dez novas peças foram apresentadas ao vivo, na altura, ainda sem nome, num soalheiro jardim matosinhense em Julho passado com a ajuda de um baterista, um baixista e do flautista Chip Wickham, o mesmo que participa activamente, ao lado de outros reputados instrumentistas, no álbum. O disco recebeu ainda a contribuição de PEACH. nas vozes.
A fusão de jazz, música clássica e de espirituais constitui para a artista um género de rito de passagem, de alquimia artística em que a harpa assume o comando emocional de uma sonoridade planante e perfeitamente libertadora, para o que se aconselha audição tranquila nas asas de tão delicada fada-madrinha...
Sobre os portugueses Mazarin não há notícias muitas vezes. Discretos na suas deambulações entre Beja, Albufeira ou Viana do Castelo, têm em Lisboa o epicentro de um projecto de novo jazz sedutor já por aqui recomendado, nomeadamente, aquando da estreia nos discos de vinil pela nortenha Monster Jix no final de 2020. Desde aí e exceptuando a inclusão de um inédito na compilação da mesma editora "Cursed Vol.2" ("SPCWLKR", para ouvir ali em baixo), o colectivo têm agora investido seriamente na composição e gravação de um álbum de estreia que faça justiça à qualidade e frescura que cruza o jazz com outros géneros e linguagens.
Ele aí está, de nome "Pendular", disco começado há quatro anos durante a chegada da pandemia e do qual foram retirados dois singles prévios: "R.B. - j.b." que conta com a participação de Rodrigo Brandão, artista brasileiro de spoken word que escreveu uma letra de homenagem a Jamie Branch, trompetista ligada à editora International Anthem desaparecida em Agosto de 2022, poucas semanas após ter passado por Lisboa; "Chester", o primeiro single lançado em Fevereiro que reflecte uma influência mais electrónica com origem no movimento arrebatador do actual jazz londrino.
Os restantes seis temas são também audíveis através do youtube e neles colaboram Sara Badalo ("Colours"), o acordeonista João Frade ("Caçadores") e ainda Gil Dionísio e Soluna ("Deuses e Tolos"), num trabalho produzido pelos próprios Mazarin com a ajuda de Sickonce.
Para memória futura, de frisar que o quinteto é formado por Léo Vrillaud nos teclados, Francisco Bettencourt no saxofone e flauta, Vicente Booth na guitarra, João Spencer no baixo e João Romão na bateria. Logo que houver notícias, esperamos vê-los num qualquer palco ou sala das redondezas.
Aos setenta e cinco anos, o britânico Brian Eno mantêm sobre si toda uma aura mítica que foi acumulando desde quando se juntou aos Roxy Music em 1970 até ao presente, carreira que se desdobrou e desdobra, para além de músico, na produção, na composição e teoria ou ciência sonora, sendo uma daquelas figuras indissociáveis da história moderna da música.
Será, assim, natural que até aqui chegado, não seja surpreendente a estreia inglesa de "Eno" agendada para o Barbican londrino no próximo dia 20 de Abril, um documentário biográfico inovador que promete ser diferente sempre que for projectado, já que a inteligência artificial fará o favor de definir, aleatoriamente, o layout da película! Foi o que já aconteceu no Festival de Copenhaga no passado dia 17 de Março ou em Nova Iorque aquando do Festival Sundance de Janeiro, o que se repetirá na novidade nesse sábado no Barbican onde está também marcada uma conversa pós-filme com a presença do próprio, do fotógrafo Gary Hustwit, realizador do documentário, e do compositor e criativo Brendan Dawes.
O filme terá acompanhamento sonoro oficial com a edição de uma banda sonora de dezassete faixas que cobre trabalhos a solo datados de 1974 e 1975, parcerias com outros génios como David Byrne ou John Cale e também música retirado do último "FOREVERANDEVERNOMORE" (2019), o vigésimo nono álbum de estúdio, e da colaboração empreendida em 2023 com o irmão Roger num concerto ao vivo na Ácrople ateniense com o registo de "By This River". Incluídos, estarão ainda três inéditos ("Lighthouse #429", por exemplo, vide abaixo).
O tema "All I Remember", que encerra o filme, foi escrito propositadamente para este projecto e nele Eno refere as suas influências iniciais como Ketty Lester, Dee Clark ou Bobby Vee e as experiências vividas. Para o respectivo video, estreado o mês passado, são apresentadas um conjunto de imagens nunca vistas.