sábado, 25 de abril de 2020

(RE)LIDO #87
















GRÂNDOLA VILA MORENA
A Canção da Liberdade
de Mercedes Guerreiro e Jean Lemaître. Lisboa; Edições Colibri, 2014
Poderemos sempre questionar se uma única canção pode motivar a edição de um livro, a realização de um documentário, de uma série televisiva ou até de um filme. E uma peça de teatro? Quando essa canção é "Grândola Vila Morena" o argumento para cada um deles obtêm esteio numa força e numa história de acentuada tenacidade mas também de muito romantismo e até de suspirada poesia tal como vai pairando ao longo da leitura deste ensaio. Descomprometido e sem enciclopedismos exagerados, pretende-se e consegue-se tornar a contar de forma ritmada as eventualidades e acasos de uma canção involuntária e revolucionária que José Afonso escreveu como homenagem à localidade alentejana onde, em 1964, foi recebido de braços abertos por uma comunidade corajosamente afável e acolhedora das suas canções. O destino estava traçado.

Ao relermos esta sequência de acontecimentos até ao dia e consequente noite em que a canção seria a escolhida como senha definitiva da revolução a ser emitida vinte minutos depois da meia-noite na Rádio Renascença, percorre-nos, de imediato, um conjunto de imagens e cenários que mereciam, mesmo, uma aposta cinematográfica baseada em factos verídicos: a inspiração chilena em escolher canções como senhas conspiradoras pelos militares em viagens a Espanha, as subtilezas das trocas de informações para confirmar as senhas, a censura a pairar em todo o lado, os telefonemas cuidadosos, as condicionantes, nervosismos, subterfúgios e percalços dos radialistas e técnicos para conseguir concretizar, sem falhas, a sua emissão, constituem, entre outros, um enredo tenso e perfeitamente sedutor para que alguém "pegue" na história, e que história, e realize um filme de época que está ainda por fazer. Se lhe juntarmos todo o processo prévio, por aqui descrito, relativo à gravação da canção para o disco "Cantigas do Maio" que decorreu em França em 1971, podemos então juntar mais uns bons cenários e sequências a um argumento infalível que teria no registo daqueles passos arrastados na gravilha de inspiração alentejana que ouvimos no começo do tema um momento de previsível ternura.

"Uma canção como chamariz. Uma flor como símbolo... Não é comum". Não, não foi um filme. A revolução fez-se com canções e esta chegaria a ser oferecida de forma tangível a muitos compradores em algumas lojas comerciais do nosso país como símbolo dos novos tempos. O mesmo formato chegou inclusive a ter edições internacionais em países como a antiga Alemanha Democrática e a sua apropriação internacional nunca mais parou. Se nos lembramos ainda do movimento contestatário da intervenção da chamada Troika em Portugal em 2013, foi a mesma canção que chegou a interromper um Primeiro Ministro no Parlamento e cuja reacção é dos momentos mais memoráveis da arguição política de tribuna. Quarenta e seis anos depois, num período de incertezas e de diária perplexidade, pede-se para que hoje a cantemos à janela de casa de forma distante mas estranhamente unida. Aqui a deixamos, a canção da liberdade eternamente inspiradora, aos vinte minutos do dia 25 de Abril de 2020... 



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