segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

(RE)VISTO #108

















FREDDIE MERCURY: O ÚLTIMO ACTO 
de James Rogan. Reino Unido; Rogan Productions/BBC, 2021 
RTP2, Portugal, 4 de Fevereiro de 2023 
Por natural influência de um primo mais velho, os Queen fizeram parte da nossa adolescência como nenhuns outros. Primeiro, em K7's gravadas, depois, a muito custo e de trás para a frente, na compra dos álbuns originais ouvidos de fio a pavio. A mania foi-se alastrando a amigos mais próximos e o armazém traseiro da casa de uns deles tornou-se, entre jogatainas de ping-pong e suecada, o reduto contínuo para os ouvir bem alto como banda sonora de fundo ou, não poucas vezes, em simulações do quarteto em cima do palco, fazendo das vassouras as guitarras e dos baldes do poço a bateria. Não havia playback mas sim uma sobreposição anárquica do que saía das colunas com o nosso berreiro e barulheira, um reportório que ia dos incontornáveis "Bohemian Rapsody" e "We Are the Champions" até ao, então novo, "Radio Gaga". Ao comando e de microfone/cabo de madeira na mão, quase sempre o mesmo, conhecedor das letras sem falhas, imitava o maior, Freddie Mercury

Acompanhámos, por isso, a invejável festa esgotada de Wembley em dois dias seguidos de 1986 - sem certezas, ou pela RTP ou pela rádio - e as peripécias consequentes que confirmava o boato de que os Queen não tocariam mais ao vivo. As imagens impressionantes desses concertos, associados à anterior participação no Live Aid de 1985, tinham sido muitas vezes usadas sempre que o assunto passava, aos poucos, a ser falado mas onde não se explicavam os motivos, as razões ou as causas do abandono dos concertos. Só com a morte de Mercury, em 1991, a desistência ficou plenamente explicada mas sempre associada a preconceitos e segredos que uma nova doença tinha disseminado - a SIDA matava e muitos, não preparados para a nova realidade, disfarçavam a contaminação com medo da opinião pública ou da reacção de familiares e amigos. Em 1985, a morte do actor Rock Hudson com o síndroma foi o primeiro caso de verdadeiro impacto público e que alarmou a Europa e, consequentemente, o Reino Unido. 

É este o panorama de base deste documento que, longe de uma abordagem artística, traça a partir de Freddie Mercury a chegada da SIDA, os seus mistérios e implicações ou o clima de insegurança redundante em atitudes de desinformação, de disfarce e até de castigo divino. Quem viu o filme "Bohemian Rapsody" de 2018 sobre a vida de Mercury, notou que o assunto foi sempre tabu mesmo para os restantes Queen e que a sua homossexualidade, apesar de desconfiada, nunca foi assumida frontalmente. Não tinha que o ser e não há testemunhos de que esse facto tivesse condicionado a qualidade das canções ou dos concertos, mas nota-se algum arrependimento de Brian May e Roger Taylor (o baixista John Deacon não participa no filme) em não ter falado com Mercury sobre o facto, o que talvez tivesse ajudado a uma precoce prevenção. Difícil suposição, atitude que nem a irmã, também ela convocada para relatar o assunto, conseguiu confrontar ou obter uma resposta efectiva. 

O medo instalado da contaminação levou Mercury a adiar o inadiável e a mentira acabou por enredar o artista e muitos, à época, a viver a mesma situação. Os testemunhos paralelos aportados para o documentário são elucidativos da dor e transtorno que a comunidade gay viveu e que a imprensa "Murdoch" sensacionalista rondava de perto sempre que uma figura pública se refugiava na incerteza. A negação, apesar do acompanhamento médico, não impediu que a banda continuasse a gravar e a compor já com Mercury em nítido sofrimento mas o importante era não parar - impressivo o esforço por Montreux na gravação de "Miracle" cheio de canções agora sinalizadas como biográficas e reveladoras do embaraço a que se junta a versão inaudita de "The Great Pretender" dos The Platters e o seu irónico "just laughing and gay like a clown". 

O avanço rápido da doença tinha o condão de acelerar forças para continuar a fazer o que mais gostava, música para a qual a voz nunca falhou até finar. A catarse de "The Show Must Go On", um mês antes da morte, é como um último grito, não para que o ouçam, mas para que o compreendam. Por esta altura, confessamos, os Queen já pouca ou nenhuma preponderância tinham nos nossos gostos musicais e o que seguiu ao seu falecimento - homenagens, tributos, quezílias ou digressões mancas que o documento aborda na parte derradeira - haveriam de condicionar e desviar a nossa atenção mas não o nosso respeito e admiração por uma lenda maior da música popular. Com alguma tristeza e melancolia, foi bom recordá-lo e, sim, we'll keep on fighting till the end... como tantas vezes gritamos de vassoura nas mãos! 

À socapa, para rever aqui!


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