A zona ocidental da Porto é, também hoje, uma zona acidental, no sentido complementar da palavra. Pela Rua do Heroísmo fora, e até à estação de Campanhã, vão-se espalhando novas lojas, tendências, projectos e aventuras que acabam em boas surpresas. O concerto do brasileiro Nyron Higor e do amigo e parceiro Batata Boy num desses locais inusitados, num final de tarde de um domingo calorento, é a prova que a cidade, afinal, ainda vibra!
Higor é um jovem que repegou na onda eterna da bossa nova e deu-lhe uma compleição nordestina, carregando ao de leve em algumas correntes electrónicas quase sempre guiadas pelo violão acústico. Transparece um modo muito próprio e calmo de enfrentar as canções de auto-produção, caseira e didáctica, que o álbum de estreia "Fio de Lâmina" (2022) sinalizaria como artesanal, praticamente, instrumental e de ambientes diferenciados.
O tempero chamou a atenção da londrina Far Out Records que já este ano lançou o homónimo segundo disco que Higor andou a apresentar pela Europa com Batata Boy, produtor e multi-instrumentista certificado. Lado lado, num jeito informal de roda de amigos, os dois construíram uma sequência tranquila, quase crua, que cruzou instrumentais antigos e novas canções, tudo bastante suculento e, diríamos, milagroso. Autocarros, bicicletas, trotinetes, turistas distraídos ou cromos da zona, a tudo resistiu esta banda sonora para uma tela vidrada, a tudo se sobrepôs pela sua eficácia, beleza e, como não, fortuna. Que bata, pois, forte o sino da Senhora da Saúde...
(Novembro 2025: video removido a pedido do artista)
O festival vimaranense Manta faz vinte anos em Setembro e a festa já tem programa oficial - dia 12, sexta, sobem ao palco do jardim o duo Hot Air Balloon e o senhor Sérgio Godinho e os seus Assessores, e dia 13, sábado, é a vez de Bia Maria e do brasileiro Rodrigo Amarante, que, assim, regressa ao norte do país ao fim de quase um ano. Acesso gratuito, como sempre!
Mike Oldfield (1993), Metallica (1999), The Beach Boys (2001), Oasis (2002), Patti Smith (2010), Leonard Cohen (2012), Lauryn Hill (2019) ou Sting (2022). Pelo Auditorio de Castrelos de Vigo, situado num complexo ao ar livre de parque arborizado e monumentos, já passaram estes e muitos outros nomes internacionais, mas certo é que nunca lá fomos... A oportunidade que agora se criava com o agendamento, surpreendente, dos The Black Keys por parte do Concello de Vigo para as festas da cidade não deixava margem para dúvidas - a missão, em estreia, teria que ser cumprida, mesmo que à última da hora!
A procura de bilhetes para acesso restrito ao recinto, nesta e noutras ocasiões, têm motivado verdadeiras colasmadrugadoras e, apesar da inscrição online atempada, a sofreguidão informática pareceu-nos resultar em banhada e desilusão. Mas eis que, por milagre da Virgem do Carmo, se confirmou a compra de um, e só um, boleto. Preço: 15€!
O recinto, na hora da chegada, estava já bastante preenchido na bancada granítica que rodeia o palco, espaço de acesso livre, sem necessidade de bilhete ou controle, onde uma concentração assinalável de lancheiras e garrafame se fazia já notar. Perto do palco, os pagantes, onde orgulhosamente nos incluímos, haveriam de preencher sem pressas o terreiro, pouco relvado, até ao momento em que o alcaide local irrompeu palco dentro para reafirmar o orgulho na presença da banda, um verdadeiro achado rockero, dizemos nós, atendendo ao programa sofrível agendado para o verão. Mande sempre Sr. Caballero, e para o ano, já sabe, não se esqueça do Jack White!
Sem aquecimento, que assim ficou mais barato, os The Black Keys também não necessitaram de cortesias prévias. O carburante está há muito tempo (2001!) infiltrado na máquina, apesar de alguns emperros temporários da dupla, e não foi difícil prever a sua perfeita engrenagem - Dan Auerbach assumiu-se como o frontman guitarrista (aquele "Weight of Love"...) e principal vocalista de uma torrente de canções em catadupa, sem direito a mimos ou frescuras, que o rock quer-se sem gelo e de enfiada. Não se perdeu tempo, por isso, com muitas apresentações ou salamaleques aos restantes músicos (4) e nem Patrick Carney, o baterista e produtor parceiro, teve direito a solar como, às tantas, deveria ter acontecido/merecido.
O alinhamento, um pouco mais curto que o habitualmente escolhido na corrente digressão, não desiludiu ninguém, repleto que esteve de uma colecção de hits e preferências dos aficionados, alguns com direito a coro colectivo como, quase logo a abrir, em "Gold on the Ceiling", "Fever", "Tighten Up" ou "Howlin' for You", pedradas agitadoras, ainda hoje, certeiras. Pelo meio, uma dupla de canções novas ("Man on a Mission" e "No Rain, No Flowers" de um disco de originais a sair já em Agosto) e uma versão escorreita e a matar de "On the Road Again" dos Canned Heat, hipnótico com quase sessenta anos! O encore previa-se memorável.
A escolha de "Little Black Submarines", semi-balada acústica que é rematada já em plena electricidade, serviu para que o recinto fosse banhado por luzes móveis e preparou a respiração para o incontornável "Lonely Boy", hino intergeracional de irresistível riff e dança comunitária que um tele-disco icónico haveria de eternizar. Ohhhh, oh, oh, ohhhhhhh, que grande concerto!
No final dos dois primeiros instrumentais, a jovem Lana Gasparotti disse, alto e bom som, ao que vinha - uma viagem cruzada de jazz e electrónica com extensões ao hip-hop e drum'n bass, que um teclado vigoroso haveria de comandar. Autora e compositora com sede em Lagos, mas de ascendência curiosa em Leça da Palmeira e na Croácia, o balanço foi engrossando quer na aceleração, quer na complexidade das peças dançantes, algumas com acrescentos levemente cantados ou sussurrados.
Sentiu-se, pois, bastante segurança do trio, resultante da experiência recente no processo de gravação do disco de estreia "Dimensions" e do qual se seleccionaram as melhores canções. O género, confluente, lembrou, por vezes, os 4Hero de boa cepa e muitos outros irrequietos projectos como os BadBadNotGood, confirmando-se que o actual planeta jazz é mesmo ultra dimensional e surpreendente. Será preciso continuar a dar-lhe a atenção e a partilha merecidas. Gasparotti é só mais um perfeito exemplo desse envolvimento que interessa acarinhar e promover.
As nuances entre o jazz e a nova soul, ou neo-soul, afiguram-se hoje inconsequentes. A programação de um qualquer festival de jazz tem-se, há muito, espraiado a territórios não clássicos de raiz unicamente instrumental, o que sugere uma atenção redobrada na procura de públicos de diferentes gerações e gostos. O evento de Matosinhos não foge à regra, com todos os riscos que essa opção implica. O caso da australiana Allysha Joy é um perfeito exemplo que essas apostas nem sempre servem para valorizar o curriculum e prolongar memórias.
As canções do alinhamento retiraram-se, na maioria, de um álbum chamado "The Making of Silk" editado em 2024, colecção onde não se deslumbra um momento arrebatador ou diferenciador. Foi nessa onda limpa, bem feita, é certo, mas de madorra bordejante que o concerto planou, apesar do tom rouco e sedutor da voz no limite do irritante e dos sons, sempre fantásticos, do Fender Rhodes. Tal como aquando da passagem da amiga Ego Ella May o ano passado, um concerto dito de jazz ao ar livre de final de tarde pode ser até bem tocado e cantado, o que não deverá, e apesar do Joy no nome, é ser de gradação tristonha...
Seis meses depois, o disco "The Purple Bird" de Bonnie "Prince" Billy, que por aqui mereceu quase imediato elogio, continua em acentuada audição e muitas vezes suspiramos só a pensar o que seria ouvi-lo ao vivo!
Pois, sabe-se agora que Will Oldham têm concertos marcados para Portugal em Novembro, com passagens próximas por Penafiel (Ponto C, dia 8, sábado), Braga (GNRation, dia 9, domingo, previsivelmente, ao final da tarde) e descida até Lisboa (Festival Vale Perdido, dia 10, segunda).
Já lá vão dezassete anos desde o Mercedes... e há agora ainda mais pérolas, como as de abaixo, para partilhar. Já fazia falta!
Quando se pergunta qual será o futuro do jazz, talvez a apresentação surpreendente dos corto.alto no coreto matosinhense possa servir como resposta. À harmonia de um saxofone e do seu jogo com o trombone e a bateria, juntou-se muitas vezes um baixo eléctrico profundo, gingão e irresistível, num balanço coadjuvado por samplers e outras electrónicas subtis. Tudo bem feito, intenso e de frescura assinalável tendo em conta a juventude de um projecto que arrisca até reinvenções de canções de Kendrick Lamar!
Ao comando do trio escocês esteve Liam Shortall, o tal "corto alto" castelhano, multi-instrumentista que denota vigorosa e inteligente abordagem artística onde cabem batidas, brincadeiras house e algum experimentalismo. O álbum "Bad With Names" de 2023, que chegou a ser candidato a Mercury Prize no ano seguinte, previa-se ser o eleito para a selecção do alinhamento, mas as escolhas recaíram em algumas das 30 peças numeradas, mesmo que inacabadas e de um conjunto alargado de 108, guardadas na hard-drive durante muito tempo e que foram ultimamente disponibilizadas.
A um próximo disco, que será já editado pela Ninja Tune, editora sempre atenta a estes fenómenos futuristas, não faltará, assim, inspiração e material de calibre vigoroso. Como o do fim de tarde no jardim...
O senhor Wilco Jeff Tweedy gravou um álbum triplo de trinta canções a que deu o nome de "Twilight Override" e com edição prevista pela dBpm Records Inc. em Setembro. A trabalheira foi aprumada no habitual The Loft, estúdio do próprio em Chicago onde também assumiu a produção, mas a mistura final coube ao amigo Tom Schick.
Na aventura colaboram alguns cúmplices repetentes como Liam Kazar, Macie Stewart e os filhos Spencer e Sammy Tweedy, sendo a montanha de canções justificada pelo aproximar de um género de abismo que Jeff assume ter que ser dominado pela insistência no que melhor sabe fazer. No fundo, um alívio e uma claridade ampliada do dia-a-dia de uma vida/história que se quer co(a)ntada.
Há digressão marcada para 2026, com chegada à Europa em Fevereiro, e é Espanha (12 e 13) a primeira contemplada. Espanha é também, bem recordada, num dos quatro temas hoje dados a ouvir. Crepuscular!
Sim. Talvez a sala da Casa da Música seja demasiado grande. Talvez a acústica continue a desmerecer a beleza da arquitectura. Talvez o raio das cadeiras continuem, sem remédio, desconfortáveis. Talvez, para a maioria presente, a comparência seja só (mais) um momento de entretenimento e curiosidade. Talvez os que continuam a sair a meio, como em 2014, irão voltar da próxima vez. A aprendizagem implica erro.
Não. Ir a um concerto de Bill Callahan requer sacrifícios, intuição, calma e muito respeito. Ele até que, em demasia, se fez sentir no silêncio entre canções, no cuidado em não subverter, ui, as regras de captação de imagens, ou no resguardo cauteloso da plateia em não entrar em diálogos com o artista que ele não aprecia confianças (está por testar).
Sim. Do que ali se estava à espera era de ouvir canções. Das melhores que o indie americano se parece ter esquecido de valorizar, mesmo que sem ajudas de outros músicos, já que, na apresentação self-made, Callahan tratou de usar os pés para fazer soar um bombo e uns pratos, auxiliares subtis que, mesmo assim, arranharam qb a sofrível propagação sonora do espaço. "Coyote", "Say Valley Maker", "Natural Information" ou "Too Many Birds", logo a seguir a um dos poucos pedidos do público, deveriam motivar candidatura a património imaterial, o que obrigaria a um anexo especial só para "Let's Move to the Country", o único encore escolhido e a que faltaria juntar o monumental e esquecido "Dress Sexy At My Funeral".
Não. Desistir não nos assiste. Sozinho, acompanhado, na imensidão de um relvado, no conforto de uma boa sala, no jardim lá de casa (isso é que era...), será sempre um pecado ficar sentado no sofá logo que o homem, agora pai, nos faz a cortesia de uma visita de estado, de estado de alma. A de sexta-feira foi, uma vez mais, mater!
A dupla inabalável Karen e Don Peris, junta vai fazer quarenta anos sob o nome de The Innocence Mission e depois de ter anunciado o regresso aos concertos ao vivo em Setembro próximo, lançou a semana a passada um EP de sete temas, todos tocados e cantados a expensas próprias.
Trata-se de "The Raindrop Cars", anunciado como um parceiro valioso do álbum "Midwinter Swimmers" de 2024, juntando-lhe cinco novas canções e três variações de temas aí contidos provenientes de sessões radiofónicas e gravações demo. Mais umas gotinhas de ternura para acrescentar a tantas outras...
Depois da visita de 2023, o regresso de Amaro Freitas a Matosinhos foi triunfante. Sem contemplações, como parece ser hábito do artista, os primeiros vinte minutos quase que valeriam, por si só, para fazer levantar uma qualquer plateia sentada de auditório no seu contínuo e ritmado balanço, calibre de acento sambista e quase funk que obrigava à dança. A magistral torrente só teria fim com o maravilhoso "Baquaqua", já perante forte ovação.
Cumprindo a inspiração amazónica do último álbum "YY" que veio apresentar, passou-se, então, a uma fase de longo relaxamento, em que uma série de instrumentos ancestrais se cruzaram com o piano num jogo de serpenteado crescente que, aos poucos, se transformou numa suite vincada de sons e batidas. A subtileza do trio instrumentista evidenciou-se, então, na sua plenitude jazzística. Cintilante!
Antes do final, haveria tempo para partilha e conexão com o muito público presente a partir de "Gloriosa", tema que Freitas dedicou à mãe, ali transformado em celebração colectiva e de aconchego a um artista cada vez mais aclamado e da família. Percebeu-se, sem truques, porquê!
O muito cá de casa Jonathan Jeremiah prepara a sexta insistência em disco de uma pop inteligente e cuidada que só a Europa central parece acolher de braços abertos. Trata-se de "We Come Alive", com data de saída apontada para Novembro pela PIAS alemã, e segue-se a "Horsepower For The Streets" de 2022, mais uma enérgica maravilha a que ninguém ligou nenhuma!
O experiente compositor inglês assume alguma ousadia e renovada riqueza orquestral registadas em estúdio de Somerset, mas com acertos em Amesterdão, cidade que Jeremiah adoptou como a principal da sua actividade artística. A primeira prova - "Kolkata Bear" - não engana na potencialidade...
No já icónico coreto, coube a Mansur Brown abrir a edição deste ano do Matosinhos em Jazz, um género de reciclagem anual do novo jazz que tem tido neste festival ao ar livre uma referência de incomparável pertinência. A presença do jovem guitarrista londrino e dos parceiros foi só mais uma prova desse afortunado refinamento.
Tal como na versão nocturna do ano passado, a guitarrada serviu-se flutuante na variação eléctrica e semi-acústica que tanto provoca movimentos espontâneos de air guitar como trips imaginárias por cima das árvores. Do alinhamento não foram notados novos instrumentais, os que farão parte do novo álbum "Rhila" previsto para Agosto, mas foi proporcionada uma viagem seleccionada por uma sonoridade única no panorama do jazz moderno. Um exagero, dirão uns, muito datado, dirão outros. Pura diversão, dizemos nós!
Aquando da notícia sobre "Strawberries", o novo álbum de Robert Forster gravado, afinal, na Suécia com uma banda de apoio, ficamos a suspirar por mais que, na altura, o tema título disponível fazia adivinhar numa crescente adição. Ouvido e ouvido nas últimas semanas, o disco transparece numa ingenuidade e beleza que só Forster sabe fazer e que advêm de uma série de reviravoltas de uma vida intensa e invulgar.
Há no conjunto de oito temas um que talvez seja o perfeito exemplo dessa capacidade em continuar a estremecer a vulgaridade - chama-se "Such a Shame", imagina-se biográfico e absorve-se na sua perfeição pop sem que sejam precisas imagens ou filmes em movimento. Basta a letra, a história, a voz, a melodia, os instrumentos.
"No one I've meet has seen me yet at my best. No." atira-nos ele no fim.
Esta canção está lá tão perto... e não é pena nenhuma.