NICK DRAKE Remembered For A While
coordenado por Gabrielle Drake e Cally Calloman
London: John Murray, 2014
Este bonito volume de capa dura e considerável peso já fez viagens de férias para casas de praia vicentinas, nortenhas e até pousadas madeirenses. Não teve sorte e, apesar dos arejos, regressou sempre tristonho ao ponto de partida da estante onde pousou desde a sua compra em 2014, ano de publicação por uma reputada editora
inglesa. Sempre olhamos para ele com enlevo e carinho, desfolhamos-lhe muitas vezes e de forma rápida as mais de quatrocentas páginas mas o conteúdo não merecia pressa ou qualquer sofreguidão na consulta da informação recolhida e reunida porquanto, depois de tantos livros devorados sobre o amigo
Nick Drake, o momento certo devia funcionar como revisão e sedimento de homenagem à vida de um dos maiores. Confessamos, no entanto, que o aproximar do número 100 da rubrica (a)crítica de leituras sobre o mundo da música acelerou agora a escolha tantas vezes adiada a que se junta o anúncio de uma biografia oficial a sair na
Hodder & Stoughton com dia e ano
marcados. Tudo isto é, sem dúvida, verdade mas a razão principal da demora, por mais estranha que possa parecer, foi sempre só uma - não querer enfrentar o relato inédito e verdadeiro de uma tragédia que continua a enfurecer-nos na tristeza e no desalento.
De impressão e desenho gráfico clássico e elegante, o conjunto de testemunhos e imagens reunidas pela irmã Gabrielle com a ajuda do documentalista e também músico Cally Calloman a partir do vasto arquivo de família é quase definitivo, dividido que está pelos capítulos The Seed/a semente, The Flower/a flor, The Fruit/o fruto, The Harvest/a colheita e The Stock/a herança de um percurso de vida perfeitamente segmentado. Para o iluminar e esclarecer, quer como músico, cantor, compositor, filho ou irmão, há variadas abordagens em forma de entrevista aos principais amigos (Paul Wheeler, Jeremy Harmer, Brian Wells ou a norte-americana Robin Frederick), de resumo de conversas informais, de fotografias inéditas, de reprodução de numerosos recortes de imprensa, de projectos de capas de discos rejeitadas, de letras manuscritas ou datilografadas e, principalmente, de cartas e outra correspondência trocada com os pais desde muito cedo.
Aqui, nesta imensidão de informação directa e subliminar, tem o livro a fonte não contaminada de relatos e factos na primeira pessoa, onde vigora uma escrita inteligente e quase romanceada sobre as primeiras conquistas e obstáculos desportivos ou musicais na escola secundária em Marlborough, as férias libertadoras com os amigos em Aix-en-Provence, a viagem a Marrocos ou a saltada atribulada a St. Tropez que o intenso relato de
Colin Betts, já previamente publicado, reforça na plenitude. Rapidamente nos pomos a imaginar Drake a tocar para os Stones numa esplanada de um restaurante de Marraquexe ou a recolher moedas numa praça da Provença depois de tocar algumas versões ou as primeiras canções originais entre baforadas em cigarros de erva, postura bem diferente daquela mítica timidez e recolhimento a que nos acostumamos de ler aquando de concertos futuros com palco e público expectante. Com a chegada a Cambridge acontece o envolvimento irreversível com a música, traduzido na felicidade de um contrato discográfico que as cartas para família, em menor número, não disfarçam num contentamento risonho quanto ao futuro, mas em que, desde logo, as escolhas e os custos se afigurem tortuosos e nada fáceis.
A partir daqui, serve e servirá o livro como enciclopédia artística obrigatória sobre os três discos e mais um punhado de canções originais editados e escritos entre 1969 e 1972, um trabalho de compilação informativa irrepreensível e quase científica sobre a sua gravação, os instrumentos, os acordes, os músicos, as opções de estúdio, as influências, os pormenores e acasos do percurso curto mas notável de um músico determinado e talentoso na sua busca incessante pela perfeição mas traído pela falta de reconhecimento público em contraste com os repetidos elogios de todos os envolvidos, da família aos amigos surpreendidos. Com "Pink Moon", disco quase maldito no adensar da tempestade negra, chega também o tal receio em perceber a história que conduziu à desgraça mortal.
A página inicial do tormento é a 327. Estende-se, então, uma surpreendente selecção de apontamentos diários feitos pelo pai Rodney Drake sobre a estadia do filho regressado à casa-mãe. Estamos em Tanworth-in-Arden, no countryside inglês, onde Nick se abriga e refugia depois de goradas as suas expectativas comerciais e profissionais e se multiplicam os problemas mentais e comportamentais de um jovem adulto enfraquecido, confuso, revoltado e indefeso. A partir de Março de 1972, Rodney inicia a dolorosa tarefa de documentar a montanha russa de atitudes, começos, solavancos, rupturas, mentiras ou oportunidades de cura, em tempos de tratamento incerto e arriscado duma malaise desconhecida e rebuscada no diagnóstico, na tentativa de aliviar a dor do ente querido. Dolorosa, como leitores, é a constatação de um sombrio emaranhado de menções penosas e duradoiras sobre um ser humano em desgaste acelerado de solidão e incapacidade física e psíquica para decidir ou estabilizar posturas conducentes à tão desejada ajuda na reabilitação (oh, so week in this need for you). Com alguns nós na garganta e uma pesada compaixão, a página final do sofrimento é a 364 e custou chegar até lá...
O alívio, contudo, submerge logo a seguir no capítulo The Harvest onde se agrupam testemunhos sentidos de amigos como Brian Wells ou Jeremy Harmer e, sobretudo, Robyn Frederick que com ele conviveu em tempos de felicidade por França. O texto "Nick Drake: Orpheus Visible" é uma tocante reflexão que encandeia pelo lirismo florido sobre o mais importante, ou seja, a eternidade da música e a sua terapêutica em jeito de mantra e que começa assim:
"When I listen to the songs of Nick Drake - to Nick Drake singing his songs - something shifts. The world slips just a little bit sideways. An ancient, unfamiliar door opens and I can see something beyond my everyday life. Beyond that door is a world that has more depth, more truth. It's a feeling that only exists in the present moment, when i'm listening to Nick singing, then it slips away again below the surface. (...)".
Bastará ouvir a última das canções para o entender na plenitude e, como se fosse sempre a primeira vez a cantá-la só para nós, fazer dessa energia limpa uma gratidão eterna!