quarta-feira, 12 de maio de 2021

NICK DRAKE, INCURSÕES IBÉRICAS?

Mojo, Janeiro de 2000













Quando "Portugal" nos surgiu impresso como local de refúgio em 1971 de um Nick Drake já contaminado por uma cansada apatia, logo imaginamos, de boca aberta, que o nome do país estaria errado ou truncado mas a confusão acelerou-nos, de imediato, um brilhozinho nos olhos. O artigo em causa, uma longa prosa de quase quinze páginas chamada "Be Here Now" da autoria de Ian MacDonald (1948-2003), estava incluído na revista inglesa "Mojo" de Janeiro de 2000 e o documento faria depois parte da obra "The People's Music" (2003) com o título "Exiled From Heaven". Seria posteriormente reproduzido nas longas memórias "Remembered For a While" de 2014. A referência a Portugal manteve-se em ambos os livros sem qualquer correcção ou nota. Estranho. 

O jornalista Ian MacDonald foi um reputado profissional e músico britânico, também ele pairando numa depressão que o levou ao suicídio em 2003, tendo sido dos primeiros e mais persistentes promotores das canções do malogrado artista. Estudante de arqueologia e antropologia no King's College de Cambridge, esteve com mais alguns num quarto de uma residência universitária onde Nick Drake tocou algumas canções ainda inéditas numa tarde memorável de Primavera em 1969 e que, dois ou três meses depois, fariam parte do primeiro álbum "Five Leaves Left". Tal como Drake, desistiu do curso ao fim de um ano.

Para a (in)consciente ou (des)cuidada confusão entre Portugal vs Espanha não temos nenhuma explicação. Qualquer uma das biografias mais creditadas, mesmo que não oficiais e até anteriores à data do referido artigo, anotam a cidade de Algeciras como o destino certo dessa jornada de objectivo revigorante mas o equívoco conduziu a naturais imprecisões como a de Pedro Adão e Silva no excelente "Nick Drake - Um Desconhecido Entre Nós" (Expresso, 21 de Novembro de 2014). 

A interrogação no título deste post serve, pois, como uma dúvida de reconforto a uma proximidade idolatrada, mesmo que a resposta seja hoje de aparente e fácil alcance... ou não! 

Mural de Juan Luis Vargas Caro em Algeciras, Espanha (fotografia EuropaSur)














As incursões de Nick Drake (sim, no plural) dos anos setenta pelo sul de Espanha sem quaisquer troca de cartas ou fotografias conhecidas, miudezas que nessa altura seriam o que menos apoquentava uma mente confusa, sempre nos suscitaram diversas curiosidades e conjecturas, nada de novo atendendo ao cinzentismo nebuloso de um período artístico que o músico então experimentava de forma (in)voluntária, isolada e desgarrada. 

O autor de "Pink Moon" conhecia Algeciras, local onde tomou o ferry para Tânger ao lado dos amigos em 1967, segundo carta enviada aos pais em Abril desse ano (Remembered for a While, pág. 67). A habitual história contada em vários artigos de imprensa e na maior parte das biografias adianta que, quatro anos mais tarde, Chris Blackwell, o dono da Island Records, lhe deu a escolher uma das muitas casas de que dispunha como forte investidor imobiliário e estando a sua villa de Algeciras livre, não deverá ter demorado muito tempo para que Drake a tenha eleito para retiro temperador nesse verão de 1971 atendendo ao prévio conhecimento da cidade, do clima e da cercania de Marrocos, país que lhe marcou um fascínio. Era também, supostamente, um território de acesso facilitado a cannabis de que era impulsivo consumidor.

Em carta biográfica dirigida ao médico Leon Redler em Maio de 1973 na tentativa desesperada de obter ajuda terapêutica, uma sugestão do velho amigo Brian Wells, Drake escreve: "After completing them [os três álbuns], I went to Spain for a while and then came home here [Far Leyes] to my parents' place, where I have been for about the last year and a half (...)" (Remembered For A While, pág. 344). Sem certezas, subentende-se que viajou para Espanha só depois de gravar "Pink Moon" (Outubro de 1971) a que se acrescenta uma posterior anotação do pai Rodney no seu diário (28 de Outubro de 1973, pág. 347) referente a outra deslocação ao mesmo país nesse mesmo mês através da descoberta, pela mãe Molly, de uns canhotos de bilhetes (comboio, avião?) para Málaga, daqui para Paris e, daí, um outro bilhete para Inglaterra (avião, barco?). 

A cidade de Málaga, que dista cerca de 140 quilómetros de Algeciras, seria o polo intermodal para chegar à casa de Blackwell onde, supostamente, esteve alojado por diversas vezes mesmo que sem companhia conhecida e sem, alegadamente, uma única guitarra. O pai, a propósito, acrescenta na mesma nota: "It was after that expedition that he brought back his new guitar. All very mysterious!".
Sem dúvida.

 
Calle Palmera, Colonia San Miguel, Algeciras (Fotografia Algeciras Al Minuto)













Sobre estas estadias enigmáticas podem levantar-se uma série de especulações que, esclarecidas, trariam mais luz a compulsivos drakeanos onde nos incluímos sem reservas: 

- como aguentou Nick Drake, sozinho e já em desconsolo, sete, quinze ou mais distantes dias sem apoio algum? 
- não terá tido ele uma qualquer companhia familiar ou outra nesses períodos como sugere o artigo do The Times
- sem falar espanhol e sem muito dinheiro, as estadas traduziram-se num solitário e contemplativo retiro soalheiro? 
- será que Blackwell teria, na altura, outras residências na Andaluzia? 

Se atentarmos às dificuldades com que Pérez García se deparou na localização correcta da suposta villa veraneante na tal Calle Palmera da Colonia San Miguel em Algeciras e que, por exemplo, Pistolini se refere a um apartamento no sul de Espanha (Le Provenienze dell' Amore, 1998, p. 129), um tipo de construção mais comum nessa altura a uma cidade maior como Málaga, de imediato se compreende que as pontas soltas deste emaranhado de dúvidas dificilmente serão algum dia apanhadas ou sequer agarradas. 

Mas e se agora viesse a público que, afinal, Chris Blackwell nunca teve nenhuma propriedade em Espanha e que nunca patrocinou qualquer deslocação de férias ou outra ao protegido Nick Drake nesses anos setenta! A revelação inédita feita pelo próprio ao autor de uma novo biografia em preparação, deita por terra uma série de dados adquiridos, confunde ainda mais a história e lança uma série de outras questões:

- a estadia prévia ao registo de "Pink Moon" (verão de 1971) que se diz ter decorrido em Algeciras é um mito biográfico que nunca aconteceu?
- as estadias posteriores (de recordar a referida carta de Drake a um médico onde afirma ter estado em Espanha só depois de gravar os três discos e as notas do diário recolhidas pelo pai, 1973) sucederam em que cidades ou países? Málaga? Portugal (just kidding...)?  

Tal como em qualquer outro pátria europeia, a música de Nick Drake demoraria a ser ouvida e amada em Espanha mas o que não faltam agora são livros, publicações ou homenagens que tentam apressar um reconhecimento falhado aquando das passagens incógnitas e despercebidas. Os seus discos não tiveram por lá edição imediata, exceptuando "Pink Moon" que a Island fez sair logo em 1972 e que é hoje uma rara peça de colecção merecedor de destaque tímido em imprensa atenta dessa época como, por exemplo, o do jornal catalão La Vanguardia que a ele se refere como “una novedad que puede interesar a ciertos núcleos de público a los que les guste la canción intimista, dulce y susurrada”. 

Um pouco antes, em 1971, a mesma editora publicava no país uma compilação denominada "El Pea" com uma selecção de artistas e bandas e onde Drake estava representado ao lado de gente como Sandy Denny, Traffic, Free ou Cat Stevens através da canção "Northern Sky" mas erradamente impressa "One of These Things First". Ao duplo álbum, conhecido como "disco da ervilha" e que teve edição noutros países europeus, quase ninguém ligou nenhuma atenção. A Nick Drake também não... I'm a poor boy / And I'm a rover!

Sem comentários: