terça-feira, 4 de maio de 2021

(RE)LIDO #101






















FAR LEYS
 
de Miguel Ángel Oeste. Málaga; Zut Ediciones, 2014 
A chamada narrativa rock é uma variante literária atractiva mas algo traiçoeira. No caso da vida Nick Drake, recheada de encantos, secretismos e desgraça, ela serviu já de inspiração ou motivo para variadas prosas e tramas ficcionais. De cor, recordamos o caso dos ingleses Mark Radcliff ("Northern Sky"", 2006) e Phil Rickman ("The Wine of Angels", da série "A Merryl Watkins Mistery", 1999), do alemão Frank Goosen ("Pink Moon", 2005), de Courtney Seiberling ("Five Leaves Left", 2010) ou do amargo Marshall Pierce ("Nick Drake Diaries", 2011). Haverá, certamente, outros mas a tendência tem-se acentuado de forma inequívoca e curiosa pelo sul da Europa, nomeadamente por Itália, França e Espanha e que teve em 2014, no caso do maiorquino Eduardo Jordá ("Yo Vi a Nick Drake", 2014), o nosso baptismo agradável no género.

Do mesmo ano e das proximidades é este "Far Leys", romance do malaguenho Miguel Ángel Oeste que recebeu o nome do casarão vitoriano onde Drake cresceu e haveria de falecer em 1974, uma imaginada aventura de maior fôlego e erudito esforço. Com semelhante rótulo há até um disco tributo a cargo de uns tais Blend e um instrumental do próprio Drake originalmente nomeado por "Sketch 1" e que foi dado a conhecer no disco póstumo "Familly Tree" de 2007, passando depois a ser designado por "Far Leys" por ter sido, certamente, por lá composto ao lado de muitos outros. Atendendo ao título, poderíamos julgar que o centro das atenções do enredo estaria nessa habitação mítica e local de peregrinação, como acontece, aliás, no referido livro de Jordá. Não é o caso. Porquê, então, escolher esse nome - simultaneamente, um refúgio e uma prisão - juntando-lhe na capa a fotografia de uma árvore sem folhas quase submersa por uma neblina invernosa e nortenha? 

Uma suposta explicação remeterá para o facto de esse ser o local de um epílogo trágico que submerge desde o primeiro parágrafo envolto em trevas densas. O autor não o assume, confundindo ainda mais nas suas arguições, mas o mistério da vida melancólica e triste de Drake permite-lhe uma extensão nada fácil de tempos e conexões inverosímeis: há um actor e realizador de cinema, Richard, que passados trinta anos desde a morte do artista, pretende fazer um filme sobre ele, iniciando uma obsessiva tarefa de tudo saber, reunindo contactos, promovendo encontros/entrevistas com todos aqueles personagens reais que percorreram a sua curta existência - por exemplo, o produtor Joe Boyd, o amigo e orquestrador Robert Kirby ou o fotógrafo Keith Morris - para o que conta com a ajuda de uma tal Janet, suposta amizade coeva do músico e também ela uma hesitante informadora apaixonada pelo malogrado Drake. Em diálogos numa primeira parte e em memórias individuais na parte seguinte, o novelo inventa situações e cenários onde uma misteriosa Sophia Ritter está no centro de uma teia bem urdida de tensões, mas é notória a inspiração directa em factos relatados nas biografias já editadas e, principalmente, no magnífico livro de memórias do mesmo ano. 

Há coincidências para todos os gostos: o tal Richard é um personagem inspirado no jovem actor Heath Leadger, conhecido pelo papel em "Brokeback Mountain", que se suicidou em 2008 e que assumiu a sua vontade de fazer o tal filme, projecto abandonado mas trágico; a tal Sophia Ritter é Sophia Ryde, uma das poucas (única?) paixões amorosas de Drake a quem o próprio escreveu uma carta confirmando o rompimento da relação (?) na tarde que antecipou a madrugada do suicídio/acidente e sobre a qual se especula há longo tempo (canções como "Free Ride" sugerem ser um tributo evidente ou o destino dos lamentos dos versos "Know that I love you/Know I don't care/Know that I see you/Know I'm not there" de "Know", canção incluída em "Pink Moon"), uma misteriosa identidade que se revelou frontalmente discordante com a história oficial narrada pelos pais de Drake; a tal Janet McDonalds será uma desconhecida confidente e suporte emocional (um amor perdido...) dos últimos tempos e de que há muito se fala mas que, certamente, futuras biografias (sim, o filão vai continuar) tornará mais evidente na identificação. 

Se nalguns casos se alteram os nomes (Ritter seria Ryde), noutros mantêm-se os baptismos originais, a maior parte ainda vivos e que se vêm envolvidos em algumas situações ficcionais comprometedoras de traição, sexo, confiança e abuso o que, não sendo proibido, se afigura deselegante e até inconveniente mesmo que a época seja a de inícios dos anos setenta, plena de exageros, imoralidades e vícios. Alteram-se ainda percepções biográficas sobre Nick Drake assumidas pela história, envolvendo-o num feitio traiçoeiro, arrogante e promotor de querelas e mentiras. Ficções! 

A perseguição de um fantasma aporta um outro, o do próprio Richard em desgaste psicológico e físico acelerado pela degradação de uma relação tempestuosa com a parceira Erika, a instigadora da paixão comum pelas canções de Drake que se vê abandonada em detrimento de uma ideia fixa do amante, o impossível filme biográfico, em plena gravidez de risco. Um romance dentro do próprio romance que acaba por ser a melhor surpresa de uma novela tormentosa subjugada a uma iminência exagerada da morte mas, ainda assim, de uma habilidade agridoce. Como Drake...         

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