de James Erskine. Reino Unido; 2019
TV Cine Edition, Portugal, (arquivo)
Há quase sempre na aura de músicos e cantores lendários uma pequena abertura por onde, mais cedo ou mais tarde, sairá um vapor escuro pronto a surpreender a opinião pública. No caso de Billie Holiday, unanimemente considerada uma das melhores vozes do século XX, a amargura foi desde cedo comentada e vasculhada sem, contudo, se entender e perceber a dimensão íntima dessa tragédia que uma vida curta (1915-1959) esconderia até ao limite.
Durante os anos setenta a jornalista americana Linda Lipnack Kuehl procedeu à gravação de mais de duzentas horas de entrevistas com pessoas que tinham convivido com Holiday, desde músicos, amigos, familiares ou até amantes com o objectivo de escrever e publicar uma biografia que, tragicamente, nunca chegaria a terminar. O realizador James Erskine teve acesso a esse manancial audio de cassetes e fitas e juntou-lhe imagens de arquivo alusivas ou de circunstância em formato de documentário onde se revela uma nova e surpreendente dimensão da mulher e da artista de Filadélfia.
O destino da jovem Eleanora parecia condenado à desgraça imposta por uma América defeituosa na segregação e racismo, limitando acessos e direitos, o que cedo levou ao seu resvalo para a prostituição e o vício do haxixe que, apesar de legal, acelerou problemas e azedumes. Mas havia uma voz, única e inconfundível, que lhe permitiu seduzir homens e mulheres sem freio e que o mundo do jazz aprendeu a respeitar em ligações sucessivas a outras estrelas como Artie Shaw, Jimmy Rowles, Lester Young ou Count Basie que lhe chamou, para todo o sempre, Lady Day. O rodopio ao vivo onde se juntavam intérpretes brancos e negros irritava donos de hotéis, de bares ou de locais de concertos e confundia uma artista em ascensão, calada na sua revolta que aditivos mais duros e consequentes corroíam sem remédio.
O icónico "Strange Fruit", escrito pela própria, serviria como grito explícito contra o racismo colado na sua pele, somando admiração e até veneração mas despertando cercos de vigilância policial e jurídica que o filme acentua de forma intencional, polémica que deu azo a película ficcional que o mesmo canal estreou em Fevereiro e que tem repetição, agora complementar, agendada para breve. A canção passou a ser obrigatória em qualquer espectáculo, mesmo que raros e com uma Lady Day cada vez mais magra e chagada por casamentos violentos a tocar o masoquismo, períodos solitários de prisão e dependência crescente e perigosa de drogas duras.
O descontrole evidente entra olhos dentro num grau de tristeza e desgosto que nos fere sem dó e, como cantado, sem explicação para tal vida de sofrimento. A misteriosa morte de Linda Lipnack que o filme insinua, sem cumprir o seu desígnio obsessivo, só serve para agudizar dúvidas enterradas numa teia de silêncios que este excelente documento deve reclamar, com mérito, ter em definitivo começado a desfazer...
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