sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

(RE)VISTO #103





















THE BEATLES AND INDIA 
de Ajoy Bose. Inglaterra; Renoir Films/Silva Screen Music Group, 2021 
TvCine Edition, Portugal, 1 de Dezembro de 2022 
O jornalista e político indiano Ajoy Bose lançou em 2018 um livro sobre a relação dos The Beatles com a Índia. Chamou-lhe "Across The Universe - The Beatles And India", nome da canção onde as influências da música indiana se notam de princípio ao fim, e que foi lançado cinquenta anos depois do célebre retiro dos Fab Four em Rishikesh, um evento que não foi transmitido em directo pela televisão mas que obteve acompanhamento massivo em todo o mundo. Nesta tarefa obteve a ajuda de Peter Compton, um reputado investigador e documentalista que ajudou na reunião de documentação e testemunhos suficientes para ilustrar e construir uma narrativa alternativa sobre tamanha viagem de inspiração e... confusão. Fazer um filme estava, assim, a curta distância. 

Quase tudo já foi dito e redito sobre o episódio e os seus antecedentes - o artigo da Wikipedia continua em constante actualização - e já serviu para sátiras inesquecíveis e também para arquivos digitais de duvidosa proveniência, mas sempre com uma figura central, Georges Harrison. No seu ambiente familiar, ouvir música indiana através da rádio aguçou a sua curiosidade sobre o som da cítara e, aquando da gravação de "Abbey Road" e pretendendo usar esse instrumento, uma das cordas partiu-se havendo necessidade de a substituir. Estávamos em 1966 e o imprevisto haveria de motivar e multiplicar rapidamente o contágio sobre o exotismo da sonoridade e, por isso, nada como beber na fonte com imediatas viagens a Deli e contactos com músicos e lojas de instrumentos. Faltava a aprendizagem que Harrison acabou por obter do mestre Ravi Shankar, parceria e ligação que o filme destaca de forma evidente e clara, um encontro multi-cultural decisivo e pioneiro que mudou também o gosto musical na própria Índia onde os The Beatles não deixaram de ser um fenómeno influenciador (o testemunho de Biddu, produtor e músico que associamos ao disco-sound da década seguinte, ganha aqui uma surpresa). 

Harrison mergulha, então, no país em férias lúdicas mas pedagógicas quanto às tradições hindus e os seus significados, chegando a gravar com músicos locais ("Wonderwall", 1968) e proporcionando, cada vez mais, uma maior influência nos restantes parceiros de banda que a ascensão do mestre Maharishi e a suposta pertinência da sua proclamada meditação transcendental se revelaria imparável. Se as drogas e, particularmente o LSD, tinham já causado experiências limite, a prática proposta pelo novo guru levou os The Beatles até Rishikesh, cidade do norte da Índia banhada pelo Ganjes e no sopé do Himalaia, para uma nova experiência colectiva em plena natureza ao lado das esposas, amigos (Donovan, Mike Love, Mia Farrow) e reclusos anónimos. 

O filme volta ao local, hoje um sítio turístico apesar de abandonado, sobrepondo o passado e o presente com testemunhos interessantes e onde se percebe a descida à terra dos quatro famosos mas também a estranha e perigosa veneração a Maharishi. A presença vigiada e controlado por magotes de jornalistas - o testemunho de um deles e de como fintou a segurança para entrar no local é piadético - revela-se também vital no assinalar das desistências, primeiro a de Ringo, depois a de Paul e ao aumentar das dúvidas sobre a veracidade da terapia. 

Talvez se esperasse que o documento fosse mais profundo quanto à música que o mesmo Paul e John aproveitaram para, então, compor e que, na sua maioria, haveria de resultar numa obra prima. O álbum branco e muitas das suas canções tiveram berço em Rishikesh e as raras documentadas ("Blackbird" ou "Dear Prudence", por exemplo, sobre uma irmã de Mia Farrow) sabem a pouco mas acabam por ser a sua parte mais saborosa. É um prazer ver os Beatles juntos sem ser em cima de um palco ou num estúdio em confraternização pausada e natural... Contudo, tudo começa a ser questionado, dos mantras duvidosos às acusações "montadas" de assédio sexual a Maharishi e até de espionagem americana (!), ganhando a paz aparente uma espessa nuvem negra a que só Harrison foi resistindo convictamente na procura de uma resposta à pergunta "Porque sou famoso?". 

As suas canções talvez chegassem para obter uma solução simples, mas elas não se ouvem por aqui, aliás, quaisquer excertos ou notas originais estão arredadas da banda sonora, apesar de o filme ter inspirado um conjunto de versões de audição aconselhável, sendo essa uma lacuna que não belisca a qualidade e frescura de um documentário pertinente e de agradável lisura mas que, mesmo assim, não esclarece em definitivo se a Índia foi um destino inocente ou uma farsa pré-preparada de encobrimento a uma separação anunciada. Transcendental!


Sem comentários: