sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

(RE)VISTO #104





















JANE POR CHARLOTTE
 
de Charlotte Gainsbourg. França; Indée Films/The Party Film Sales, 2021 
TvCine Edition, Portugal, 14 de Dezembro de 2022 
A vida de Jane Birkin aparentava estar já documentada como merecia. Um segundo volume de memórias autobiográficas mais recentes (1982-2019) saído em 2019 sugeria anotar a muitas dos acontecimentos, imagens, filmes ou canções os detalhes definitivos que a amiga Agnàs Varda tinha já retratado à sua maneira em 1988 com "Jane B. Par Agnès. V" (o filme passou no início do mês em Serrralves no âmbito da restrospectiva dedicada à realizadora francesa). 

A proposta que a filha Charlotte Gainsbourg endereçou à mãe no sentido de lhe dedicar um outro e novo documentário de perigosa intimidade e confronto não meteu medo à progenitora apesar da chegada de uma leucemia e de uma relação semi-tensa com essa filha do "meio" de três casamentos (as irmãs Kate Barry, já falecida, e Lou Doillon). O resultado é enternecedor. 

Com projecções no Doc-Lisboa e no Porto-Post-Doc do ano passado ou na Festa de Cinema Francês de 2022, o filme teve estreia inovadora em salas de bibliotecas ao longo de 2021 a cargo da associação cultural Zero em Comportamento mas a sua aparição televisiva fará, certamente, justiça a um projecto de risco assumido que se afigura de obrigatória visualização e inevitável elogio. 

Perante uma câmara, a redescoberta de um vínculo familiar, interrompido aquando da trágica morte de Kate Barry em 2013, assume-se para o espectador incauto como uma simulação ensaiada e disfarçada num guião anotado. Ao documento, pelo contrário, não se conhece pré-plano de construção ou aprovação, o que resulta em imagens de uma constante surpresa e candura em diferentes situações e locais. A protagonista nesses encontros é, naturalmente, Birkin em digressão pelo Japão, na areia da praia da casa da Bretanha, num teatro de Nova Iorque mas as conversas, os diálogos e as confissões têm quase sempre uma destinatária no feminino, uma intimidade por vezes confrangedora, inesperada e de alguma tensão no "deitar as coisas para fora". 

Aproxima-as uma liberdade que a vida lhes deu, talvez em demasia, mas é a figura de Serge Gainsbourg, marido e pai em alguns anos juntos de felicidade e quezílias, que paira, mesmo assim, como apaziguador-mor - a casa comum de união e infância é-nos mostrada quase ao jeito de uma visita guiada a um tesouro museológico conservado in situ e comentado ao vivo entre recordações e confidências pungentes, num dos momentos mais fascinantes e comoventes do filme. 

Acentua-se, por isso, a sensação que esta é uma oportunidade de Charlotte para se rever na sua mãe de uma forma ousada e pacificadora de desgostos e asneiras que alguns fantasmas do passado tinham abafado. Fá-lo de uma forma reveladora, que longe de um tributo, funciona como uma dedicatória de amor e afecto que, mesmo tingida de dramatismo, não nos fere mas nos ajuda na cura. O piano de Nils Frahm como fundo sonoro suaviza-a na perfeição. 

O abraço final com o barulho do mar ao fundo é, pois, o epílogo que todos queríamos ver acontecer, não como um simplório e esperado final feliz, mas como um emocionante e sereno tranquilizante que o bom cinema ainda nos oferece. Aproveitem-no!  

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