terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

(RE)LIDO #118





















O ANO DO MACACO / Year of the Monkey 
de Patti Smith. Lisboa; Quetzal Editores, 2020 
Na fotografia de capa de mais este delicioso volume de deambulações reflexivas, retrato tirado pelo amigo e guitarrista Oliver Ray, vemos Patti Smith sentada numa praia enevoada com o mar ao fundo em trajes habituais de jeans rasgados, casaco preto e barrete na cabeça. Não se vislumbra, a olho nu, a sua expressão de leve sorriso que uma ampliação interior permite confirmar, denotando, talvez, o desafio positivo em que a sua vida artística se tornou. 

Em ano de septuagésimo aniversário (2016, o tal ano do macaco), Smith decidiu, logo no primeiro dia, assumir um intervalo nos concertos e digressões para fazer o que já se tornou, de tempos a tempos, fundamental - viajar, escrever e recordar livremente objectos, vidas, amigos ou paisagens. A constância desta inquietação desafiadora já nos deu outros relatos ("M. Train" de 2015 ou "Devotion" de 2019) e a vantagem da insistência continua reveladora e até satírica. Talvez a eleição de Trump, que percorre acusatória estas memórias, se tenha infiltrado de forma viperina na assunção de uma realidade indesejada. 

De madrugada, em pleno motel californiano "Dream Inn", começa uma de muitas viagens caleidoscópicas que tornam sonhos em realidade ou realidade em sonhos, uma imaginação que aparenta ser semelhante à de todos nós. Não é. A amizade, a dor ou o envelhecimento tanto podem ser motivo de orgulho, mágoa ou preocupação mas Smith fá-lo, pela escrita, num jeito leve e encantado de irresistível espiritualidade em que o café, os cafés e as mesas de café funcionam como um único e inesgotável pavio narrativo. 

Entre as amizades perdidas, as de Sandy Pearlman (1943-2016) e Sam Sheppard (1943-2017) merecem sentidos e comoventes preitos mas é nas evocações dos lugares e dos escritores que lhe pertencem que Smith continua a ser de imbatível doçura e virtuosismo. No caso de Bolaño e Pessoa, a reverência transparece comovente e povoada de uma magia requintada, tendo Lisboa direito a um género de intervalo na prosa (p. 131) a merecer fotografia poética da Brasileira. 

Em 2015, mesmo antes de um concerto no Coliseu, a sua estadia pela capital levou-a, temerosa, até à Casa Fernando Pessoa onde leu, e gravou para o arquivo oral da instituição, "A Saudação a Walt Whitman" de Álvaro de Campos, contactando fascinada com as variadas obras que o autor foi comprando e lendo. O momento é no livro aproveitado para recordar o clássico "Lisboa Antigua" que o seu pai cantarolava mas também para prestar um homenagem à cidade que diz ser "a ideal para nos deixarmos levar pelo tempo. (...)". 

Já depois de um de dois epílogos, as páginas derradeiras conduzem-nos a uma outra urbe fantástica, a flamenga Gante na Bélgica e uma viagem até próximo de um retábulo dos irmãos Van Eyck, para uma misteriosa e surpreendente teia de enigmas e simbolismos. Tal como a autora, o relato na sua transcendência dá-nos vontade imediata de pegar na mala para até lá viajar, mesmo que só num sonho a preto e branco. Coisas da boa literatura.      

Patti Smith regressará a Portugal já no próximo mês ao lado do Soundwalk Collective para concertos em Braga (lá estaremos em veneração) e Lisboa e, no verão, para um espectáculo com a sua banda no Festival Jardins do Marquês em Oeiras.

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