segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

CRIATURA & CORO DOS ANJOS, Casa da Música, Porto, 4 de Dezembro de 2021

A chamada música de intervenção que nos habituamos a situar nos anos sessenta e setenta portugueses como forma de protesto social e político parece hoje isso mesmo, uma coisa do passado. Não é. O colectivo Criatura que gosta que se lhe chame bando, já que os seus dez músicos partilham a mesma determinação na agitação atiçada, dedica-se a transportar para os nossos dias complicados a tradição e memória da música popular em versão revisitada mas convicta da sua pertinência e utilidade. Fá-lo com instrumentos ancestrais (o adufe, a guitarra portuguesa, o violino ou o cavaquinho) mas também com acrescentos de teclados, bateria ou guitarra eléctrica sem que a aparente incompatibilidade belisque hábitos ou modas e desde que o resultado final se afigure persuasivo e verdadeiramente moderno. 

Para sobrepor a tamanha instrumentação escolhem-se, por vezes, histórias e temáticas inofensivas como o namoro, a praxe ou o tempo mas vincam-se propositadamente aforismos ou metáforas urgentes sobre a injustiça, a pobreza ou a ganância sem fim. Pelas vozes tão diferentes mas envolventes de Edgar Valente e Gil Dionísio, o verdadeiro líder por aclamação, a estreia nada inocente de sábado à noite no principal e cimeiro espaço de concertos portuense teve na plateia sentada um plenário de todas as idades interessado na provocação em formato cantado. O guião da assembleia assentou em "Bem Bonda", segundo disco editado este ano que tem no título uma curiosa expressão beirã de variado significado mas que ali reforça a intensidade de um grito incontido - "já chega"! 

Para ajudar no engrossar do eco esteve o Coro dos Anjos, ele próprio presente no registo original ocorrido em 2019 e 2020, e no qual se unem jovens activistas convictos da necessidade da acção artística como forma de bater o pé. Pena que o conforto das cadeiras tenha funcionado como inibidor de uma libertação implícita a algumas das peças apresentadas - "A Noiva" ou "A Festa do Medo do Gaiteiro", por exemplo - mas que, mesmo assim, não impediu redobrada força nos aplausos ou repetidas e impulsivas ovações em (bater o) pé. Alguém ainda bradou "bem bonda estar sentado" mas só à última se esqueceram os assentos ou licenças.   

Tivemos, pois, uma endiabrada Criatura agigantada pela proximidade e entusiasmo proporcionados por uma música que é tão nossa como de ninguém mas que nos reboca para uma urgência comum em trilhar outros caminhos solidários e de mudança. Mesmo que momentâneas, que as quase duas horas do encontro sirvam para lembrar que o tal "acordar" interventivo pode e deve começar numa sala de concertos com direito, neste caso, a prolongamento espontâneo no exterior já com a porta da Casa devidamente corrida. Como sentenciado por VHMãe: "Que filha da mãe de colectivo brilhante."!

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