quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

(RE)LIDO #109





















ARQUIBALDO
 
de Carlos Tê. Lisboa; Porto Editora, 2022 
E ao fim de vinte e três anos Carlos Tê editou um segundo romance há muito esperado. Não surpreende esta demora de alguém que faz do dia a dia citadino um género de thesauros memorizado e assimilado na escrita com entradas organizadas por Bairro do Falcão, Vila D'Este, Jardim da Corujeira ou VCI. O Porto continua a ser o território principal de uma realidade próxima, talvez situada quando Maradona era o melhor jogador do mundo mas as referências futebolísticas estende-se a outros jogadores míticos um pouco mais antigos como o escocês Archibald que deu nas vistas nos anos oitenta ao serviço do Tottenham londrino e que inspirou o alter ego do personagem principal, acabando por dar nome ao livro. 

Ele é Francisco Frade, um assistente social que se movimenta no resgate e apoio a situações difíceis em bairros problemáticos, ruas dissuasoras ou ruínas industriais, uma profissão de risco mas de reconhecido mérito e para a qual se rodeia e complementa com outros colegas e cúmplices quase amigos na partilha de cafés, restaurantes e bares ou em alusões a Gentle Giant ou Nusrat Fateh Ali Khan. Alguns deles são mulheres, parte substancial do enredo e da ondulação narrativa que lhe consomem preocupações e também distracções, um vai e vem a que se aconselha leitura atenta de forma a não se perder o fio à meada tricotada. 

Estamos, assim, num mundo de incerteza interior que corrói o tal ram-ram profissional e para o qual Tê aporta toda a sua embalagem filosófica de dimensão académica indisfarçável, o que em muitas das páginas e sentenças alcança complexidade surpreendente. Comparado ao pragmatismo do primeiro romance, as equações espalhadas pela nova escrita talvez afugentem os mais apressados porquanto o poder de toda a composição eleva a narrativa a um género de romagem interior vagarosa e que o tal outro eu Arquibaldo vai aguçando no acosso e negrura. 

É, pois, a busca de respostas quanto à origem e passado desse Francisco, o Chico do Lagarteiro que se revê na letra de "Desafinado" de Jobim ao jeito de espelho irónico e no desenho de capa, da autoria de Manuel Pessoa, pela evidência metafórica da imagem, que se adensa até ao capítulo cinquenta das duzentas e poucas páginas de um testemunho literário eficaz e superior que têm, ainda e sempre, na compaixão e sofrimento humano a poderosa e misteriosa contradição inspiradora. 

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