Fotografia: facebook do Theatro Circo |
O segundo de três dias do festival Respira!, que coloca o piano como ponto de partida e chegada de diferentes viagens sonoras, teve no franco-libanês Rami Khalifé uma primeira etapa com alguns altos e baixos embora cedo se tenha percebido o excelente domínio das oitenta e oito teclas do instrumento e mais alguns dos seus prolongamentos de cordas, prática enraizada desde cedo numa família libanesa martirizada pela guerra civil e cujo refúgio europeu permitiu verter na música uma forma de vida
Foi nas peças instrumentais que Khalifé melhor conseguiu expressar a contemporaneidade e validade da sua composição, momentos sublimados por forte ovação da plateia que contrastaram com alguma sensibilidade mais fria expressa na quase totalidade das canções cantadas em libanês que, mesmo em menor número, nos sugeriram um pouco de sensabor e até banalidade. Valeram, por isso e sem vacilação, os crescendos e decrescendos de uma forte dinâmica de ritmado impacto onde até um inesperado sapateado-beat quase nos levantou da cadeira...
Fotografia: facebook do Theatro Circo |
O curriculum de Lonnie Holley há muito que impressiona pelas dificuldades de uma infância miserável contornada pela descoberta de uma expressão artística a três dimensões traduzida em formas escultóricas concebidas com restos de lixo urbano e que muitos museus norte-americanos acabaram por incorporar. Quando Holley encontrou um velho teclado Casio e o conseguiu pôr a funcionar, a música improvisada passou a ser mais um grito incontido e prolongado sobre a "situação" americana nas suas injustiças sociais ou atentados ambientais, um agitar consciente contra o status quo que artistas como Bill Callahan ou Bon Iver ou bandas como Animal Collective ou Deerhunter cedo ajudaram a trazer a públicos mais alargados.
O último álbum "MITH" editado em 2018 é já o resultado desse reconhecimento, um manifesto visionário produzido por Richard Swift e registado ao longo de cinco anos em várias cidades americanas como a natalícia Atlanta, Nova Iorque ou Cottage Grove mas também o Porto, sim, o Porto, onde esteve em 2016 como convidado do Fórum do Futuro no Rivoli e onde passou alguns tempos em estúdio na companhia do trombonista Dave Nelson e do baterista Marlon Patton - o duo de jazz Nelson Patton.
Foi tão brilhante parelha que o acompanhou na estreia bracarense onde Holley começou ao piano, como que cumprindo o desígnio do evento, mas rapidamente se instalou sentado num género de púlpito central onde se escondia o tal teclado inicial (?). Foi daí que, até ao fim, nos lançou uma impressionante poética de vivência pessoal e de efabulação mitológica contagiante expressa de forma vincada por uma voz quase rouca e trinada que lembra Armstrong, isso mesmo, forte e segura na urgência de mudar o mundo ou conter a destruição ambiental como cantou sofregamente em "I'm A Supect in America" logo a abrir no único momento ao piano de cauda.
Embora alguns dos presentes mostrassem sinais de enfado, a maioria como que se hipnotizou por esse homem-lenda de olhos esbugalhados a profetizar com energia sobre opressão, racismo ou consumismo de fundo instrumental notável, um retrato vivo e distendido da conturbada realidade de um país que nos habituamos a reduzir a um ecrã de televisão mas que ali, na sala magnífica do teatro centenário, se transformou num toque a rebate universal de urgência caducada. Uma perfomance memorável e, acima de tudo, necessária. Acordai!
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