Menina dos Olhos Tristes/Canta Camarada
Porto: Orfeu SAT 803, 1969
Uma notável fotografia, por nós desconhecida, ilustra um artigo evocativo dos cinquenta anos do 25 de Abril da edição digital do suplemento Babelia do jornal espanhol El País. Foi obtida pelo francês Gilles Peress da agência americana Magnum Photos e, apesar de não termos conseguido ler a peça na sua totalidade, só a imagem serve para nos encher a alma apoquentada - nela, sem data assumida mas que deverá referir-se à comemoração de 1º de Maio de 1974 em plena Lisboa e tendo como fundo um prédio alto de colchas nas varandas (Avenida Estados Unidos da América?), um grupo de pessoas de cravo ao peito e, na sua maioria, sorridentes, tem no seu centro uma jovem rapariga que eleva com vigor um V feito de cravos vermelhos. A sua expressão, de olhar fixo de alguma tristeza e o luto das suas vestes talvez significassem, na altura, uma homenagem a algum irmão ou primo a quem a guerra colonial, sem sentido, tirou a vida e a que a revolução, finalmente, poria então fim.
Essa injustiça e crueldade há muito que tinham sido denunciadas em forma de canção - "Menina dos Olhos Tristes", que José Afonso escreveu no Algarve um ou dois anos depois da Guerra Colonial ter começado (1961), só seria editada em forma de single em 1969. A sua viagem e estadia para Moçambique em 1964 talvez tenha adiado a gravação, o que foi aproveitado por Adriano Correia de Oliveira para a lançar nesse mesmo ano. A canção foi de imediato proibida e conheceu posteriores versões de Luís Cília e Manuel Freire que podemos ouvir a contar a história no recente destacável digital que o jornal Público dedicou a algumas "canções que ajudaram Abril".
É este o sete polegadas de José Afonso de que mais gostamos, talvez por ter sido o primeiro que ouvimos e que conhecemos, desde sempre, guardado no móvel do gira-discos cá de casa. Capa de imagem robusta com José Afonso soturno e pensativo numa fotografia do grande Fernando Aroso tirada, talvez, na mesma sessão das que fizeram capa das primeiras edições dos álbuns "Cantares do Andarilho" (1968) e "Contos Velhos, Rumos Novos" (1969), o tal onde Afonso, sentado à mesa de casa, tem a seu colo a filha Joana.
Este disco não contempla "Menina dos Olhos Tristes" nem o lado B, o tradicional português "Canta Camarada" de chama bem mais festiva e apelativa. Os dois haveriam de emparelhar com outros dois originais, esses sim, incluídos em "Contos Velhos, Rumos Novos" ("Deus te Salve, Rosa" e "Lá vai Jeremias"), num EP posterior datado de 1970 e onde José Afonso aparece na capa numa fotografia ao ar livre tirada em Victoria Park, Londres, durante o "Festival of Life".
A canção é, sem disfarces, uma bomba anti-guerra. Bastam os primeiros versos da autoria Reinaldo Ferreira (Barcelona, 1922 — Lourenço Marques, 1959) para se perceber a intenção interventiva e acusatória, embora não se saiba como é que José Afonso teve conhecimento do poema, se através de um jornal ou do original manuscrito. Com rapidez, a censura impediu a sua emissão radiofónica mas a chegada da chamada "Primavera Marcelista" (1968-1970), uma pequena e aparente abertura reformista, permitiu o seu lançamento comercial e a sua efectiva disseminação e efeito. Percebe-se porquê.
O brilho da viola de Rui Pato, o único instrumento utilizado, ganha neste tema uma dimensão monumental que a voz clara de José Afonso, em plena potência, acentua num dramatismo activo e metafórico sobre um problema inexplicável e que haveria de ferir de morte o regime já em decadência. A tal madrugada esperada de um dia inicial inteiro e limpo haveria de o fazer tombar. Afinal, talvez os olhos da menina da fotografia não estivessem só tristes mas também cheios de esperança num futuro... livre.
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