de Teresa Moure e Maria João Worm
Santiago de Compostela; aCentral Folque/Tradisom, 2023
As biografias desenhadas são, como notado, uma tendência que se avoluma em qualidade e diversidade. No caso de músicos portugueses, a que se dedicou a José Afonso é, sem dúvida, bastante pertinente e actual, o que resulta numa edição cartonada de verdadeira novidade e algum risco inerente a toda e qualquer ficção.
Estamos, assim, perante uma narração visual da vida de Afonso a que se acrescentam suposições e situações imaginadas por Teresa Moure, professora de Linguística na Universidade de Santiago Compostela que se habituou a publicar romances, poesia ou teatro e que tem, como muitos galegos, uma ternura e admiração pela obra do músico português. Fê-lo já sabendo que os diálogos e as sentenças se destinavam a ser ilustrados por Maria João Worm, artista lisboeta com ligação sentimental à Galiza e onde já obteve vários prémios. A distinção está marcada desde o início do álbum e é, até ao fim, uma notável surpresa para o olhar em jeito de vário cenários como cinematografados por um desenho apurado e incisivo.
O jogo ou teatro de sombras aplicado tem no preto e branco do episódio primeiro, que romanceia a partida de barco para Moçambique e o abandono a que esteve sujeito, uma marca de estética quase desfocada e sombria que, de propósito, como que nos afasta e dilui de uma memória distante. O colorido quente que, logo de seguida, percorre a infância africana do cantor, estimula o leitor a uma contrastante felicidade que tanta influência teve em muitas das canções e ritmos de que Afonso nunca se separou e sempre se orgulhou.
A narrativa, apesar de cronológica, vagueia depois de África noutras latitudes mas com centro na Galiza, Espanha, e nos concertos e amizades que por lá foi fazendo e onde se convergem ficções cruzadas no feminino, com referências às filhas do cantor ou aos difíceis casamentos em desabafos inventados mas que não deixam de reportar a importância da figura da mulher tantas vezes expressa pelo canto (p. ex. "Teresa Torga" ou "As Sete Mulheres do Minho") de forma sensível e atordoada.
O enredo, de nítida inspiração documental e consulta prévia, não esquece o José Afonso lutador e resistente à censura, resiliente na prisão mas libertador e inspirador com "Grândola, Vila Morena", hino que na Galiza foi e é motivador de acções e causas políticas. Nas conversas imaginadas com amigas jornalistas (Begónia Moa) emerge uma intimidade ternurenta que a sofreguidão dos dias foi apagando e que a autora da história faz valer como de importância legítima para a percepção de uma vida venerada, mas por vezes esquecida, de uma vida intensa, mas onde se esconderam tantas dificuldades, de uma vida desprendida, mas de fama involuntária.
É essa melancolia que arrastou até à morte, é essa virtude de modéstia que este livro, assumidamente falso ("Balada do Desterro" e não "Canção do Desterro"), consegue elevar, pelo desenho, no respeito e reverência a uma figura maior da vida portuguesa e, já agora, da vida galega. Esse país (não) chamado Portugalícia tem neste trabalho visual um exemplo perfeito de uma irmandade sócio-cultural inevitável e de que José Afonso, mesmo desiludido, haveria de ser o principal entusiasta. Um terra grande da fraternidade... é sempre em frente!
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