Em 2006 os Midlake editaram "Trials of Van Occupanther", um álbum de perfeição absoluta e de muito difícil superação. Vincada, única, a voz de Tim Smith carregava as canções de um veludo pop-rock que ainda tivemos a felicidade de testemunhar ao vivo na vinda conturbada a Coura em 2012. Nessa altura, sem o sabermos e apesar da estreia de algumas canções, Smith estava já quase de partida amigável da banda para cumprir um desejo suspirado - ir para casa e prolongar um retiro duradoiro.
Ao fim de longos onze anos de silêncio, é amanhã publicado pela Bella Union o trabalho "Albion" em nome de Harp, o cognome que assumiu para um regresso desejado, onde o potencial de compositor se afirma pleno, imenso e, desde já, clássico em volta de um sonho - a velha Inglaterra da Idade Média e da Renascença numa visão aportada da música inglesa dos anos sessenta e setenta mas que deixa, logo à primeira audição, rastos nos australianos The Church, nos Cocteau Twins e nos The Cure que recebeu como conselho prévio.
Na companhia da esposa Kathi Zung, instalou-se na Carolina do Norte para germinar uma inspiração de conceito negro, onde a poesia e a literatura se confundem com o amor ou a condição humana - o tema "Daughters of Albion" advém de uma elegia de William Blake (1757-1827) ou "Herstmonceux”, canção que remata o disco e que recebeu título depois de uma visita a um castelo medieval de East Sussex no sudoeste britânico.
O caminho foi, sem dúvida, longo e acidentado mas o resultado eleva-se a uma sublime ode sonora de grandes guitarras e melodias a lembrar, como não, os iniciais Midlake, os de travo sonhador e misterioso. Um graal para os sentidos!
Quando os The Pogues começaram, em força, a ser escolha habitual de António Sérgio na frequência modelada, foi a rouquidão nasalada de Shane MacGowan que, depois de soar estranho, se afigurou de deliciosa extravagância. Como resistir a canções como "Summer in Siam", "A Pair of Brown Eyes", "A Rainy Night In Soho", "Dirty Old Town" ou essa bomba agitadora chamada "La Fiesta" que ao vivo, no Pavilhão das Antas, se multiplicaria em gritos, pinchos e empurrões colectivos.
Estávamos em Abril de 1989 e já, nessa altura, a banda e o seu protagonista eram motivo contínuo de rábulas e episódios na imprensa inglesa e que rapidamente eram sinalizados por cá: muito alcoolismo, algum ácido e um monte de lata e apelão faziam dos The Pogues na figura do seu vocalista um foguetão pronto a explodir em cancelamentos de concertos, incumprimento de contratos ou curas inverosímeis. Sempre à beira da desgraça, há um filme recente sobre, vá lá, a aventura mas este é daqueles testes documentais a que nunca tivemos vontade de assistir. Aos sessenta e cinco anos, o dia de hoje, o último do mês, marca somente o epilogo de uma tragédia tantas vezes adiada. Peace!
Um novo álbum dos The High Llamas é notícia rara e, desde logo, bem-vinda. O mestre Sean O'Hagan demorou sete anos a retomar o trilho-pop de uma banda que, além de fetiche aqui da casa, é uma continua e vibrante chancela de música contemporânea e que só foi intervalada, e bem, pelo disco a solo de 2019.
Em "Hey Panda", o décimo primeiro trabalho de longa duração que terá selo da Drag City a partir de 29 de Março próximo, a habitual sonoridade de alquimia nos Beach Boys ou Steely Dan sofre uma actualização dimensional com contribuições de Bonnie Prince Billy e da filha Livvy e novas influências assumidas como a de Tyler The Creator. A palavra de ordem é, pois, optimismo pós-covid, o que transparece no tema-título "tikTok" eleito como primeiro avanço. Ensolarado!
Parecem já longínquos os tempos em que a música de Hania Rani se resumia a um piano e voz. Foi assim que se estreou no Porto em 2019 na intimidade do CCOP mas o regresso dois anos depois na companhia da amiga Dobrawa Czocher no M.Ou.Co. pronunciava outros voos e grandeza.
Os discos que vai gravando assim o confirmam, numa notória envolvente sonora que se serve da subtileza electrónica e atmosférica para criar peças de outro calibre e de que o recente "Ghosts" é o exemplo perfeito. A façanha pode ser testada no notável concerto que o canal Arte disponibilizou este mês, um registo feito em Outubro no festival Nancy Jazz Pulsations em França.
Não admira, por isso, que os próximos concertos marcados para Portugal alcancem agora plateias nobres e bem maiores - a aula Magna de Lisboa no dia 21 de Abril e Casa da Música do Porto (bilhetes) no dia seguinte - naquilo que evidencia uma artista crescente em ascensão imparável!
Amanhã, terça-feira, dia 28 de Novembro, um pouco mais cedo que o habitual, anda à roda o euromilhões dos concertos do Primavera Sound Porto para 2024 (6 a 8 de Junho, quinta a sábado).
Cada ano com menos entusiasmo mas, ainda assim, o melhor festival da cidade, a nossa aposta é esta (Shellac, como sempre, não vale):
- 5 números;
Pulp, Phoenix, FKA Twigs, PJ Harvey, Lana Del Rey;
- 2 estrelas;
Blonde Redhead, Badbadnotgood.
ACTUALIZAÇÃO:
em cheio em três números (Pulp, Pj Harvey, Lana Del Rey) e uma estrela (Blonde Redhead). Ainda não é desta que os Phoenix aterram na Invicta.
Para o mal e para o bem, o hip-hop e a música brasileira evaporaram-se do cartaz, substituídos por uma dose inaudita de punk/hardcore norte americano. Salvam-se a Julie Byrne, os Lambchop, a Mitski, os Lankum, os Ths Is The Kit e pouco mais.
Hoje, dia 25 de Novembro, vale a pena falar do 25 de Abril. O dos corajosos músicos, editores, promotores ou jornalistas que através das cantigas fizeram revolução cultural.
Um pouco dessa mundividência está contada na recente edição da revista "Visão História" intitulada "Quando a cantiga era uma arma" e, atendendo aos tempos perigosos que vivemos, as lições que a música inspirou, mesmo a brincar, continuam, porventura, mais que essenciais. Leitura, por isso, recomendável!
Em 2011 os My Morning Jacket gravaram um punhado de canções de Natal reunidas num EP de exclusiva edição digital, um daqueles fogachos de época logo esquecidos mas que confirmava o gosto jocoso da banda na temática já tratada dez anos anos antes num outro EP satiricamente chamado "My Morning Jacket Does Xmas Fiasco Style".
No dia de hoje, a tal sexta-feira negra com direito a nova dose do RSD-Record Store Day, há cinco mil cópias disponíveis de "Happy Holiday!", um álbum em formato de bonito vinil transparente com respingos brancos e que reúne os cinco temas de 2011 e quatro novas canções, um conjunto jeitoso de versões e originais que começa com este "Feelin Sorry"... Não faz mal, mandem sempre!
O indescritível performerAlbaster DePlume, autor do excelente disco "Gold" de 2022, revisitou as sessões de gravação então realizadas no hub criativo Total Refreshment Centre de Londres e, depois de apurada selecção, produção e rearranjo nos primeiros meses do ano, moldou um novo álbum saído em Setembro com o título de "Come With Fierce Grace". Mais ouro, portanto.
As peças são, na sua maioria, instrumentais sem filtro de rudimento assumido mas também de uma candura espontânea que resulta de uma composição performativa de acto único improvisado então praticado e no qual participaram vinte músicos e cantores, com destaque para a guitarra da amiga Rozi Plain ou da bateria de Ursula Russell.
Para o primeiro trimestre de 2024 está agendada uma digressão seleccionada por alguns países europeus que aportará a Portugal a três cidades - Lisboa (29 de Fevereiro, Galeria Zé dos Bois), Coimbra (1 de Março, Salão Brazil) e Braga (2 de Março, sábado, GNRation), repetindo visitas a locais onde tocou em 2022 e alcançando, finalmente, território minhoto por onde também devia ter passado...
O disco "House Party" que Keaton Henson lançou em Junho último tem a partir de hoje uma versão acústica na sua aparente totalidade. Com selo da Play It Again Sam, de "House Party Acoustics" e para já, só se dão a ouvir dois excelentes pedacinhos naquele jeito suave com que esperamos há muito por uma apresentação ao vivo...
Entretanto e confirmando a notável polivalência artística e uma fase airosa, há já prendinhas de Natal para comprar e uma longa entrevista reveladora para ler.
A distância ainda é considerável mas é, desde já, um gosto saber que Robert Forster tem concerto agendado de regresso ao Porto no dia 3 de Junho de 2024. Nessa segunda feira, no M.Ou.Co., o ex-The Go Betweens fará a apresentação a solo de algumas da maravilhas do mais recente álbum "The Candle And The Flame" e de pérolas da banda que o consagrou.
A visita insere-se numa digressão de cinco datas por Espanha e que tem na Invicta a única confirmação lusitana, uma dádiva que se sucede ao excelente concerto de 2019 no Passos Manuel. Imperdível. Já há bilhetes.
A estreia de Makaya McCraven numa sala portuguesa teve no anfiteatro maior da Casa da Música um abrigo de eleição. Feita a apresentação do trio parceiro - Anisha Rush no saxofone, Matt Gold na guitarra e Junius Paul no baixo - o serão logo embarcou numa notável lição de jazz que abriu com a suite "Seventh String" do mais recente disco "In These Times" e só terminou ao fim de setenta minutos de ininterrupta classe mestra.
Pairou, assim, uma tensão, uma corrente de vibração contínua que o excelente som de sala realçou de forma apreciável e rara, sonoridade cujo comando, ora subtil ora impositivo, se diluiu a partir da execução da bateria que McCraven domina e espraia de forma diligente e fina e que, sem querer, nos fez muitas vezes distrair quanto à qualidade dos instrumentos complementares. Não foi o caso do penetrante, inusitado e longo solo/jogo de baixo introdutório à maravilhosa "Dream Another", uma daquelas peças que, antes de o ser, já era um clássico de jazz dito de câmara. Inesquecível.
Ao público, que preencheu dois terços da sala, restou adivinhar os melhores momentos para ir aplaudindo o fortúnio sucessivo e que o único encore haveria de acentuar com a interpretação de um prometedor e envolvente novo tema magistralmente permeado a "This Place That Place" com que se deu findo o recital. Ovação de pé instantânea e merecida para um concerto que não vai ser fácil de destronar do pódio de melhores do ano!
O dotado pianista brasileiro Amaro Freitas lançará em Março próximo o terceiro álbum de originais de nome "Y'Y", o que traduzido do dialecto Sateré Mawé (um código ancestral indígena) significa "Água ou Rio". O trabalho é uma homenagem à floresta da Amazónia e aos rios do Norte do Brasil, bem como ao poder dos espíritos encantados que "habitam" essas dádivas da natureza.
Para a respectiva capa foi escolhida uma fotografia sub-aquática obtida no Rio Negro em Manaus, onde Freitas, mesmo sem saber nadar, imergiu perante a sensibilidade do fotógrafo Hélder Tavares, tempos de reencontro com um outro Brasil que foi percorrendo nos últimos quatro anos e que o convenceu ainda mais sobre a importância da preservação ambiental como resposta urgente às mudanças drásticas do clima.
Essa expressão respeitosa obteve uma abordagem diferenciada nos dois lados do disco: no A, uma conexão sonora com a terra e a sua ancestralidade com ajudas de músicos que foi conhecendo em tournées fora do Brasil como Hamid Drake na bateria, Shabaka Hutchings na flauta e Aniel Someillan no baixo (por exemplo, no tema de avanço "Encantados", vide abaixo) e onde consta a mais antiga e magistral peça "Dança dos Martelos" já anteriormente apresentada ao vivo; no lado B, uma assumida prova da permeabilidade do novo black jazz vanguardista onde colabora o guitarrista Jeff Parker ("Mar da Cirandeiras") e a harpista fabulosa Brandee Younger ("Gloriosa"), tema que encerra o álbum. As novas texturas são ainda resultado de uma inspiração no piano de John Cage e na percussão de Naná Vasconcellos ("Viva Naná" é nome de um dos temas).
O registo foi realizado nos estúdios Carranca de Recife e no Maxine Studio de Milão en Itália, com acertos posteriores em Los Angeles e Brooklyn, numa produção do próprio e de Lercio Costa e Vinicius Barros Aquino. Terá etiqueta da Psychic Holtline americana e previsível digressão pela Europa que se sabe chegará a Lisboa no dia 22 de Março no âmbito do novo festival Belém Soundcheck do CCB e que se espera, e deseja, alcance por essa altura subidas a outros palcos do país.
Nos últimos dez anos, nas vésperas de Natal, há um hábito que Sondre Lerche não dispensa - no regresso a casa a Bergen, Noruega, é obrigatório uma visita ao estúdio do amigo Matias Téllez para o registo de uma versão de um hit referente ao ano que se aproxima do fim.
O pecúlio foi agora reunido no disco "Understudy", com edição limitada de vinil e com imagem de capa obtida no cimo do monte Fløyen, uma das sete colinas que rodeiam a cidade e bem perto do referido estúdio. Ao longo da década foram eleitos temas de Miley Cyrus, com que tudo começou, Sia, Ariana Grande duas vezes, Selena Gomez, Bob Dylan, Ladya Gaga, Doja Cat e Taylor Siwft, a cujo "Anti-Hero", a eleição de 2022, se deu imagens recentes.
Ao conjunto analógico acrescentam-se, em regime digital, mais cinco valentes versões de Scott Walker, Madonna, Prefab Sprout, Beyoncé e o clássico "Moon River". No dia 22 do próximo Dezembro a bondosa "tradisom" nórdica terá novo reforço. Aceitam-se sugestões. Esta é a nossa »»»
O cantor e guitarrista Taylor Kirk akaTimber Timbre desenvolveu desde 2010 uma estética folk facilmente reconhecível e de dotação hipnotizante. A leve negrura da maioria das canções funciona como banda-sonora original para curtas metragens cativantes, audíveis, por exemplo, no disco "Sincerely, Future Pollution" de 2017, o que volta acontecer com a mais recente maravilha.
Em "Lovage", editado pela Integral Music em Outubro, requisita-se aquele recolhimento necessário a uma contemplação de longo alcance e de poética sonora compensadora que desperta suspiros por um concerto de aconchego. Há por estes dias uma digressão pela Europa em formato trio sem, contudo, qualquer ancoradouro ibérico, o que é realmente uma pena. Aqui ficam, no entanto, estes prodígios.
O nome de Huw Evans akaH. Hawkline apesar de discreto e desconhecido para uma maioria, tem estado involuntariamente presente em alguma da boa música que vamos "ouvendo". O galês, que é também designer, andou alguns anos por Los Angeles e já fez digressões e guitarradas com o próprio Devendra Banhart em 2015, discos com a conterrânea Cate Le Bon de quem foi namorado, partilha de estúdio e palcos com outra namorada chamada Aldous Harding que chegou ao Porto em 2019 na função de baixista e também desenhou e tocou baixo para álbuns de Kevin Morby ("Harlem River", por exemplo).
Vê-lo a abrir o concerto de Devendra Banhart acabou, assim, por ser uma partilha natural atendendo a que a digressão de apresentação de "Flying Wing", disco onde o nome de Cate Le Bon se torna influente, conta com ele no importante papel de guitarrista.
Foi com a guitarra que se sentou sozinho na frente de palco em meia-hora divertida e atenta para um desfiar de um punhado de canções próprias contidas no mais recente projecto a solo "Milk for Flowers" editado em 2023 e que mereceu boas referências. O momento teve o mérito de despertar a atenção para a notória qualidade de uma composição a que não se dever perder o rasto e, acima de tudo, o gosto.
Serão para aí umas sete as vezes que já presenciamos Devendra Banhart em cima de um palco. De Lisboa a Vigo, de St. Maria da Feira à Zambujeira, passando pelo Porto ou Espinho, assistimos a concertos de ondulação diferenciada de registo free, pastoral, acústico ou pândego. Desconhecíamos, no entanto, a versão desinteressante.
Talvez pela dormência e estranheza de "Flying Wig", o novo álbum que suporta a actual digressão, a primeira parte do espectáculo redundou num irregular prolongamento dessa infiltração agravada por uma amplificação sofrível da voz, apesar de toda a competência do quarteto de suporte onde a subtileza marcante do baixo cedo se fez notar. A habitual interacção e conversa com o público foi, amiúde, de imperceptível e propositada indistinção a que mesmo um "any requests?" não obteve continuidade ("Daniel" e "Santa Maria da Feira" foram, de imediato, os mais requeridos mas Devendra limitou-se a reproduzir, ao de leve, os primeiros versos e acordes em jeito de provocação excêntrica).
Só com um "Seahorse", esse sim, de perfeição cimeira, o espectáculo ganhou, de facto, algum do frenesim que caracteriza um artista que dávamos como quase imbatível na forma como, ao vivo, fermenta intencionalmente a vibração. Paradoxal, esse habitual balanço festivo nem mesmo no curto encore, que fez a gentileza de apresentar, se notou vontade e disposição para algo mais a que a sala de visitas minhota suspirava na redenção mas que resultou numa estranha e inesperada decepção.
de Marina Parker. Londres: Curious Films/BBC, 2021
RTP2, Portugal, 4 de Novembro de 2023
Passados meia dúzia de anos sobre a estreia de "Amy - A Rapariga Por Detrás do Nome" (2015), a família Winehouse ganhou força para promover uma outra visão sobre a filha, zangada e amargurada com o conteúdo maléfico que tal abordagem biográfica lhe tinha causado.
Apelando da credibilidade sempre reputada da BBC e reunindo vontades, testemunhos credíveis e, é bom dizer, coragem para retomar uma história trágica de uma ente querida, dizem, injustiçada pela opinião pública, este é um documento que tenta reclamar da iniquidade sobre Amy Winehouse nas figuras principais da mãe Janis e do pai Mitch, insistindo em contar uma história diferente dez anos depois da morte da filha, um hiato de sofrimento que o investimento e colaboração neste projecto sugerem ser, em simultâneo, um alívio e uma homenagem.
Na voz da mãe narradora e no vigoroso empenho do pai em reconhecer erros e atropelos, somos impelidos a recordar uma infância plena de traquinice e felicidade a que o divórcio dos pais não colocou travão. Os desequilíbrios da jovem artista no futuro não foram, pois, uma consequência de má educação que a estreia aos 19 anos, com o esquecido e já maduro álbum "Frank", sugeria ser só o princípio de um estrelato longo. As nuvens negras começaram, então, a acumular-se e o filme não deixa de as esconder havendo, para isso, uma série de arquivos familiares que primam pelo ineditismo e surpresa mas sem o exagero do tal documentário prévio. Não falham, assim, o avivar de chagas como a bulimia, o álcool, as drogas ou a depressão e continua a não ser fácil percebê-las ou justificá-las. Também não valia a pena.
Talvez se possam destacar dois momentos desta tentativa definitiva de remexer na desgraça de Amy Winehouse - as imagens da visita a um género de arquivo de bens da cantora - fotografias, vestidos ou calçado, discos de ouro, guitarras, etc. - que os pais alugaram para recolher todos os objectos e memórias da filha e cujo destino foi dado a um leilão solidário e também o testemunho de uma jovem artista beneficiária da acção de uma fundação instituída como o nome da cantora para a recuperação e reabilitação de casos semelhantes de dependência e, consequente, doença mental.
Em menos de sessenta minutos, foram essas as duas únicas sequências que nos fizeram sair de um masoquismo desnecessário que, fica prometido, acaba mesmo por aqui. Para quem quiser insistir na intoxicação, o caminho é este.
Um novo álbum de Damien Jurado, o terceiro no mesmo ano, tem audição disponível via youtube, um dos raros recursos digitais para o fazer. Trata-se de "Passing Giraffes" e foi registado no mesmo local e, supostamente, no mesmo período e com os mesmos músicos do recente "Motorcycle Madness" editado há menos de um mês.
Mantêm-se, assim um género de negação misteriosa de um músico sem praticamente redes sociais, promoções assumidas ou digressões agendadas, embora o disco se encontre já à venda na própria editora - a Maraqopa Records - e com a versão de vinil só pronta em Fevereiro do próximo ano mas com encomendas barradas a partir da Europa...
Quanto aos dez novos temas, denota-se uma composição diversa como que destinada a ser interpretada e cantada por outros que não Jurado, o que acontece em quase metade do disco com o aparecimento de vozes femininas e arranjos cinemáticos, um género de música para filmes imaginados e até, talvez, projectados.
Podem confirmá-lo aqui com a peça inicial "Hello, I'm Leaving" e no easy listening de "I Cannot Want Such a Thing". Tudo estranho, tudo de entranho exigente, tudo inquietante!
No rescaldo dos seus cinquenta anos (24 de Outubro), Laura Veirs publicou um novo álbum que aparenta ser o culminar definitivo de uma carreira de trinta anos a escrever canções. Em "Phone Orphans" destapam-se composições guardadas no telemóvel a partir de uma aplicação de gravação, inspirações escondidas sobre a família, alguns amantes e si própria registadas à guitarra e piano, sozinha e relaxada, na sala de estar lá de casa.
Resulta, então, uma intimidade simples a que não foi acrescentada qualquer edição de estúdio a não ser uma requerida masterização de um disco que carrega o número treze de uma discografia consistente, mesmo que, atribulada pelas contingências da vida. O trabalho têm selo da sua editora Raven Marching Band Records.
Rezará a história, ou não, que as catorze canções seleccionadas entre as novecentas (!) demos caseiras guardadas na memória do telemóvel serão as últimas, já que se especula sobre se este não será o ponto final de Veirs no mundo da música para, eventualmente, se dedicar a outros projectos familiares ou artísticos.
A mais recente edição semestral (Outubro) da revista temática Granta dedica-se às canções. Da sua força, história, mistério ou poesia com textos de enquadramento diverso e com ensaios fotográficos de Inês Gonçalves (capa) e Lenora de Barros.
Entre a quinzena de textos inéditos ou em publicação exclusiva em português, surpreende o de João Lisboa, o nosso "Greil Marcus" como lhe chama o director Pedro Mexia, que se crucifica pelos erros de avaliação, para o mal e para bem, sobre discos de Bob Dylan com Andy White à mistura, Tom Waits, Prefab Sprout ou Rollerskate Skinny.
Depois há ainda um ensaio incisivo e saboroso de Samuel Úria sobre isto... e não é pouco!
E se aos The Beatles ainda faltasse editar mais uma canção? Tudo é possível, vindo de um filão de infindável profundidade e recurso, estando a versão final de "Now And Then", a tal peça incompleta que recebeu tratamento recente e definitivo a partir de uma demo-tape já conhecida, pronta para audição e crítica a partir de hoje.
A história está contada no pequeno mas significativo documentário abaixo e prometida está também a edição do tema em single de vinil de cor branca, azul ou preta. No lado B repousará "Love Me Do", a canção que tudo começou e que abre o "álbum vermelho" que será, ao lado do "álbum azul", sujeito a reforço de peso em novas edições previstas para dia 10 de Novembro, mesmo a tempo do Natal!
Uma prolongada estadia no México deu à francesa Aure a vontade de fazer música, relegando a arquitectura para segundo plano. Com a ajuda de amigos e de Piers Faccini na invenção das letras, gravou meia dúzia de canções para um EP a sair ainda este ano e a que chamou "A Few Notes".
A actual digressão com Andy Shauf serve, então, de antecipação viva desse conjunto ainda por destapar na sua plenitude, uma oportunidade a que a plateia prestou toda atenção e respeito e onde, apesar da timidez e do nervosismo, se puseram a nu temas de fragilidade assumida. Sem filtros, sem truques, de líricas secas ora em inglês, francês ou espanhol, os temas confirmaram-se de reconhecível potencial mesmo que de imediata associação a outras almas como Nico ou a incontornável Françoise Hardy.
A estreia de Andy Shauf no Porto não teve casa cheia mas teve, certamente, satisfação completa. Apesar do notório mal estar gripal (?), que o levou a sair do palco ao fim da primeira canção para ir buscar uma infusão milagrosa, o serão haveria de confirmar a notável dimensão de um songbook muito próprio e de particular acutilância.
No alinhamento deu-se primazia aos dois discos mais recentes - "Wilds" (2021) e "Norm" (2022) - sem que fossem esquecidas pérolas doutros álbuns mais antigos, todas, no entanto, a formarem um conjunto como que por capítulos de uma narrativa de vida em que as aparentes banalidades se afiguram plenas de significados e alusões. Despidas de outros instrumentos e travadas em parte dos ritmos - "Halloween Store" foi o perfeito exemplo - as canções funcionaram de uma forma ainda mais intensa e profunda, valorizando o sarcasmo e mordacidade das líricas, ressoando perfeitas no silêncio de uma sala atenta e em crescente veneração.
Será difícil escolher a melhor de um serão que, apesar do condicionamento da voz, se denotou recheado daquela subtil intensidade que se prolonga na mente e memória por muito tempo. Logo que possível, está, desde já, recomendada a repetição desta experiência terapêutica e... impressiva!
Sempre que Thomas Feiner toca à campainha cá de casa, isto é, dá conta de uma qualquer novidade, logo sabemos que ela é sinónimo de maravilha. A desta semana é, ainda assim, deveras surpreendente!
A canção "Dinah & The Beautiful Blue", composta originalmente em 2001 e refeita em 2008 para a reconversão do álbum "The Opiates - Revised", é um daqueles pedaços de beleza eterna em forma de tristeza misteriosa que deu já azo a adivinhações, devaneios ou narrativas. Certo é que a sua candura, sem idade e lugar, é a cada audição uma dádiva que recebeu agora um video, aparentemente, oficial.
O responsável foi Iglis Sebastyan Yelles, fundador do estúdio de design Sarikimoro Clan com sede em Tiblisi na Geórgia e que promoveu exposições e videos em Riga, Letónia e também em Estocolmo na Suécia, país onde Feiner desenvolve a sua carreira artística. Negras, como previsível, são estas as imagens...